Nas televisões, o incêndio de
Pedrógão Grande resultou num avatar técnico-totalitário da “obra de arte
total”, na qual se dá uma confrontação dialéctica das várias artes. Com as
imagens captadas pelos drones, a SIC compôs um filme com uma banda sonora que
não era a Cavalgada das Valquírias, o excerto de uma ópera de Wagner a que
Francis Ford Coppola deu uma grandiosa forma cinematográfica em Apocalypse Now,
mas tinha a pretensão da “grande arte” wagneriana.
Diz-se que os pilotos operadores
dos drones, combatentes de uma guerra à distância, antes de disparar gritam de
júbilo: “Oh, que belo alvo!” A nauseabunda estetização da catástrofe servida ao
espectador — o “belo” cenário trágico resultante das montagens e encenações
feitas nos estúdios das televisões — também mostra que alguém, certamente uma
equipa, rejubilou com os seus belos alvos que lhes fornecem matéria para uma
grande produção a baixo preço, para um filme-catástrofe que não precisa de
efeitos especiais, só precisa de uma montagem bem ornamentada e música a
condizer. Tudo devidamente sublinhado por textos, legendas e designações (por
exemplo, “a estrada da morte”) que remetem para as grandes ficções de
Hollywood. Às vezes, sobre essas imagens sobrepõe-se uma voz-off que lê um
texto a imitar qualquer coisa de literário, a sublinhar a operação que reduz a
tragédia real a uma opereta obscena. A estetização é uma violência exercida
sobre as vítimas da catástrofe e, paradoxalmente, tem o efeito de uma anestesia
aplicada ao espectador.
Para as televisões, para a
maquinaria dos directos e ao vivo, uma catástrofe como esta é um momento do
sublime. Se a emergência dessa categoria estética que é o sublime está
relacionada com os sentimentos de medo e de terror perante algo que excede toda
a medida, é preciso no entanto que a ameaça que eles representam seja suspensa
para que da dor nasça o prazer. As reportagens da televisão, muito
especialmente as imagens estetizadas que passam a servir de separadores ou de
fechos do noticiário, procedem a esta conversão da dor em prazer. São maléficas
e eticamente execráveis. Devemos perguntar como é que os jornalistas dos vários
canais de televisão se relacionam com elas.
O sublime, como sabemos, tem a
dimensão do irrepresentável, deixa a faculdade da imaginação e a fala
aniquiladas perante algo que tem uma potência ou um tamanho desmesurados. Por
isso, é sempre ocasião para o uso de meios retóricos curtos, mas enfáticos. Para
não ficarem em silêncio, para não dizerem pura e simplesmente que não têm nada
a dizer ou que tudo o que são capazes de dizer é trivial, os repórteres
recorrem aos parcos meios linguísticos que têm à sua disposição. Por exemplo, a
palavra “dantesco” (para além de uma certa dimensão, o incêndio é sempre
“dantesco” e configura “o inferno”). E porque os processos de descrição, na
televisão, consistem sobretudo em mostrar, em dar a ver, entra-se sem pudor na
exibição das imagens obscenas. Como vimos, alguns repórteres (Judite Sousa
parece que não foi a única) nem hesitaram em aproximar-se dos cadáveres e
oferecê-los aos espectadores como imagens ostensivas. Como uma personagem do
filme de Francis Ford Coppola, eles poderiam dizer: “I love the smell of napalm
in the morning.”
Face à falta de meios
linguísticos (e de tempo para qualquer elaboração mais cuidada) e porque a
televisão pratica quase como ideologia jornalística um realismo ingénuo que
acaba por nunca produzir o desejado efeito de real, os repórteres ou debitam
lugares-comuns que não têm nem valor expressivo nem descritivo, ou recorrem aos
testemunhos. Põe-se um microfone e uma câmara diante de pessoas em estado de
choque e pede-se-lhes que elas testemunhem, que elas descrevam, que elas
superem a afasia em que a situação as colocou. A violência é inominável e a
televisão torna-se patética, no duplo sentido da palavra: porque quer mostrar o
pathos, dê por onde der; porque exibe a estupidez na mais elevada expressão.
Devemos novamente perguntar: a
que coerção estão submetidos os jornalistas para que aceitem o papel de
idiotas? Ou fazem-no voluntariamente? Os jornalistas tornam-se então indivíduos
ávidos, paranóicos, como os amantes que não se satisfazem com um simples
“amo-te”. Desconfiados com a declaração tão lacónica, achando que o amor é uma
imensidão que precisa de se dizer com mais palavras, perguntam: “Amas-me como?”
E o outro responde: “Amo-te como se fosses o mais doce dos frutos.” E aí começa
um encadeamento de metáforas cristalizadas, de estereótipos. Assim são os jornalistas
munidos de microfones e de câmaras: não desistem de querer extorquir as
palavras e a alma aos seus interlocutores; não deixam de querer arrancar
testemunhos a gente moribunda ou a viver a experiência dos limites.
Esta maquinaria é totalitária, expansiva,
reduz tudo a uma peça integrada. Este jornalismo é um aparelho ao serviço da
lógica da “partilha” da comunicação, da informação e da opinião da nossa época.
A utilização dos drones realiza na perfeição esta atitude predadora de quem se
acha munido do olho de Deus: o olho que abarca, na vertical, a totalidade do
mundo. Era fatal que a televisão viesse a pôr ao seu serviço o drone de
omnivisão, dotado de uma vista sinóptica, capaz de uma vigilância de largo
alcance, “wide area surveillance”, como se diz na linguagem da guerra.
António Guerreiro
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Fonte: PÚBLICO
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