Redijo este texto na sequência da
Deliberação n.º 1571/2017, da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD),
referente à eventual publicação no portal do Governo, pelo MAI, do capítulo 6
do relatório intitulado Complexo de Incêndios ocorridos em Pedrógão Grande e
concelhos limítrofes, iniciados em 17/6, cuja preparação pela equipa do Centro
de Estudos sobre Incêndios Florestais, da Universidade de Coimbra, coordenei.
Ao aceitarmos o encargo confiado
pelo Governo, de estudar este incêndio e de preparar um relatório sobre o
mesmo, fizemo-lo com o propósito de averiguar o que de relevante tivesse
ocorrido, na sua génese e progressão, no modo como foi gerido pelas comunidades
e pelas autoridades, antes, durante e depois, e nas suas consequências, tanto
nas pessoas como no meio ambiente, social e económico.
Este incêndio constituiu a maior
tragédia que se verificou até hoje, em Portugal, associada a um incêndio
florestal, antes de mais pelo número extremamente elevado de vítimas mortais
que causou. O nosso propósito foi sempre o de dar a conhecer os factos que
apurámos, registando o que de bom e de mau nos foi dado analisar, sem condenar
ou culpar nenhuma pessoa ou entidade, mas para comunicar, ao público em geral,
as lições que se devem retirar destes eventos e para dotar as entidades
pertinentes de elementos que lhes permitam suportar um aprofundamento dos
factos expostos e a tomada de decisões, quando estas se imponham.
No dia 16 de outubro, entregámos
ao Governo uma versão completa do relatório (versão A) contendo os nomes e
identificação de pessoas e lugares. Como é sabido, o Governo decidiu publicar o
relatório, excluindo o seu capítulo 6 (o que deu origem à versão B do
relatório), que aborda os acidentes pessoais, por se entender que continha
dados pessoais que poderiam colocar em causa a privacidade das pessoas
envolvidas ou dos seus familiares. Esta versão B foi disponibilizada
imediatamente.
Foi-nos pedido que preparássemos
uma versão deste capítulo 6, em que se omitissem os nomes de todas as pessoas
envolvidas. Assim o fizemos, entregando ao Governo, no dia 19, uma nova versão
C, que foi tornada anónima, em que todos os nomes foram substituídos por letras
e números, tornando o texto impessoal e de difícil leitura, mas ainda assim
compreensível.
Em minha opinião, o ruído que se
tem feito em torno deste capítulo tem, erradamente, desviado a atenção das
pessoas para o conteúdo do nosso relatório, mesmo sem este capítulo. Ele
resultou do trabalho dedicado de uma equipa de 13 pessoas, na maioria
experientes na realização deste tipo de estudos, que participaram em anteriores
trabalhos desta natureza, e que estiveram no terreno durante mais de três
meses, falando com centenas de pessoas, consultando documentos, recolhendo e
tratando dados e realizando inúmeras diligencias. Reunimos com várias
entidades, ouvimos os seus dirigentes e agentes, apresentando-lhes, com toda a
lealdade, o teor das nossas conclusões, dando-lhes oportunidade para nos
contradizer. Trabalhámos, em particular, com a equipa do IPMA que estudou este
incêndio, aprofundando em conjunto o conhecimento de fenómenos que não se
haviam registado antes em Portugal. Estudámos a origem de cada um dos
incêndios, reconstruimos o comportamento do fogo e analisámos exaustivamente o
impacto do incêndio nas comunidades do território atingido. Tudo isso
reportámos no nosso relatório, numa linguagem que, sem deixar de ser rigorosa,
pretendia ser compreensível e apelativa para todos.
Dada a dimensão do impacto deste
incêndio nas pessoas, o estudo dos acidentes pessoais mereceu desde o início a
nossa maior atenção e fizemos um trabalho exaustivo junto de familiares das
vítimas, de sobreviventes e de testemunhas, que nos permitiu reconstituir de
uma forma que, estamos seguros, não havia sido feita por alguém até agora, os
múltiplos atos de uma tragédia nunca antes vivida em Portugal. O capítulo 6,
com cerca de 96 páginas, é justamente o mais extenso do relatório. Sem
desmerecer dos restantes, é aquele que, em nossa opinião, contem os elementos
mais delicados desta ocorrência, por se referirem ao seu efeito nas pessoas e
que justificam, em boa parte, o enorme impacto que teve, tanto a nível nacional
como internacional.
Na sua deliberação, a CNPD refere
ter tido acesso à versão C, anónima, do nosso relatório e pronunciou-se com
base nele. Passarei a analisar esta deliberação.
Decorre do teor da deliberação
que não existe, por parte da CNPD, qualquer apreciação positiva do trabalho
realizado, insistindo-se, por vezes repetidamente, em focar aspetos limitativos
ou considerados como sendo menos objetivos. A este propósito refere-se, na
página 1, que o nosso relatório não precisa o número total de feridos. Não só isso
não nos competia, como parece ser que nem agora as autoridades competentes o
sabem dizer. Aliás solicitámos esta informação, em devido tempo, a diversas
entidades, sem ter obtido uma informação concreta, pelo que nos baseámos nos
números que conseguimos recolher, que coincidiam aliás com os divulgados pela
comunicação social, de que o número de feridos era superior a 200.
Na página 1v. diz-se que são
referidas situações presumidas ou deduzidas pelos autores. Esta ideia é aliás
repetida na página 3, podendo induzir o leitor da deliberação de que o
relatório contem alguns factos não suportados na realidade. Convém esclarecer
que para além dos depoimentos e outros elementos recolhidos — de que guardamos
em geral registos de vídeo —, as deduções apresentadas se baseiam na
experiência dos autores, que decorre de mais de 30 anos de investigação de
acidentes, com a análise de várias dezenas de casos, envolvendo algumas
centenas de vítimas. Por mais singular que seja um caso, existem padrões que
tendem a verificar-se, cujo conhecimento confere uma grande verosimilhança às
deduções apresentadas.
Acrescento ainda que nalguns dos
casos referidos em rodapé, na página 4 da deliberação, se tratou de hipóteses
formuladas com base na audição de testemunhas ou familiares — que não
identificamos no relatório, por razões óbvias —, mas que indicam e justificam
padrões de comportamento. Quanto à referência aos cuidados médicos, devo
acrescentar que, como nos foi testemunhado por mais do que um dos bombeiros
queimados, se tratava de reconhecer que estes têm melhorado significativamente
ao longo dos últimos anos, pelo menos no que diz respeito a queimados.
Na preparação e apresentação dos
acidentes não nos moveu qualquer intenção de voyeurismo, de expor publicamente
as pessoas ou os seus familiares, mas sim a de apresentar, com o rigor que nos
foi possível ter, os factos apurados, para ficarem documentados historicamente,
para servirem de ensinamento para outros — incluindo o público em geral — e
para que deles se retirassem as ilações de carater operacional ou jurídico que
forem pertinentes, por quem de direito.
A CNPD reconhece implicitamente
que não é virtualmente possível tornar anónimos estes relatos, dado o número de
publicações que existem e que consultaram, a menos que se omitisse por completo
os nomes das vítimas ou dos lugares de ocorrência dos acidentes, retirando
assim a legibilidade ao texto e à mensagem. Isso decorre de se tratar de factos
que se encontram amplamente divulgados e noticiados pelos meios de comunicação
social, por vezes de uma forma errada e sem elementos importantes para permitir
a apreciação de cada um deles e do seu conjunto.
Em nota de rodapé, na página 3, a
deliberação questiona a relevância dos relatos apresentados para o estudo que
nos foi encomendado. Citando o despacho do Governo, que se publica no nosso
relatório, o seu objetivo seria o de “estudar o desenvolvimento e comportamento
do incêndio...”, omitindo o que se diz umas linhas acima no despacho:
“Considerando a necessidade de estudar o comportamento excecional do incêndio
suprarreferido e o modo como produziu danos tão graves”, segue-se a decisão de
solicitar à ADAI o estudo que deu origem ao relatório. Por outro lado, na
secção 1.2 do nosso relatório, à qual a CNPD teve acesso, dizemos: “Embora o
mandato do Governo mencione explicitamente que se solicita ‘um estudo sobre o
desenvolvimento do incêndio e do seu comportamento excecional’, consideramos
que está implícito neste mandato a análise de todos os aspetos relevantes do
incêndio, à semelhança do que tem sido feito pela equipa da ADAI noutros
estudos que realizámos, a pedido das autoridades.”
Seria para nós incompreensível
que no estudo deste incêndio nos limitássemos a analisar o comportamento do
fogo, deixando de fora todos os restantes aspetos, principalmente os associados
aos danos pessoais e às vítimas mortais. Como já disse, o propósito que nos
move não é apenas o do apuramento de responsabilidades públicas, como a CNPD
refere, mas sim o de informar o público em geral, das circunstâncias em que os
acidentes ocorreram e de se retirarem delas as lições pertinentes. Neste
contexto, a referência que é transcrita na mesma nota de rodapé de que “um
conjunto de pessoas vivera em Lisboa e tencionava voltar para a sua terra
natal” não nos parece ser irrelevante para a apreciação da situação no seu
todo, mesmo por parte dos cidadãos, por traduzir que é imperativo proporcionar
condições de segurança a quem vive ou pretende viver nas zonas rurais, sob pena
de se fomentar o esvaziamento destes espaços. Não compreendo, em contrapartida,
em que medida as referências deste tipo são relevantes para o trabalho de
apreciação dos dados pessoais, por parte da CNPD. Considero aliás que
transvasam a suas atribuições, entrando em domínios de apreciação da finalidade
do estudo e da relevância da apresentação de dados, aparentemente
circunstanciais, mas que importam para uma apreciação global da situação.
Quanto à publicação de algumas
subsecções do capítulo 6, que a CNPD autoriza, consideramos que se trata de
partes muito pouco substanciais do relatório, omitindo-se assim aspetos muito
importantes, que como a própria CNPD reconhece, são de interesse público.
Apesar de me custar muito ver
que, como sociedade, de alguma forma, por ação ou omissão, contribuímos para
que estas pessoas tenham perdido a vida, se pretenda agora tirar-lhes também o
rosto e o nome, tornando-os meros números de uma estatística. No interesse do
bem público, manifestámos às autoridades a nossa disponibilidade para colaborar
no trabalho de “anonimização” dessas partes do relatório para que seja
permitida a sua publicação. Já estamos a trabalhar nesta tarefa.
Entendemos a deliberação como
sendo aplicável ao MAI, no que respeita à divulgação da versão C do relatório,
ou seja, com o seu capítulo 6 anonimizado e truncado de algumas secções que, no
entender da CNPD, não respeitam a privacidade dos envolvidos. Estou certo de
que esta limitação será em breve ultrapassada e o capítulo 6 — em versão
integral, anónima ou com nomes — será tornado público. Temos recebido da parte
dos familiares ou de representantes legais de muitas das vítimas, sobreviventes
e testemunhas, a disponibilidade para autorizar a publicação dos relatos a que
se reportam.
Tratando-se de um assunto que se
encontra aberto à investigação de qualquer cidadão que a queira fazer, é penoso
ver que o trabalho de uma equipa de investigação, com provas e contribuições
dadas no âmbito do estudo do comportamento do fogo, da segurança e da proteção
de pessoas e bens, seja “censurado”, a bem da proteção de dados que são
reconhecidamente do domínio publico. Pode assim, de um dia para o outro, surgir
uma publicação qualquer reportar exatamente os mesmos dados que nós, com tanto
esforço e empenho, reunimos.
Pela nossa parte, tudo faremos
para que tal não aconteça e iremos usar a nossa liberdade de investigação e o
nosso direito e obrigação de divulgar os resultados da nossa investigação, para
a dar a conhecer a todos os que tenham interesse nela.
Domingos Xavier Viegas
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Fonte: PÚBLICO
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