segunda-feira, 15 de outubro de 2007

1301. PORTO SANTO: A seca e a fome

(...) As situaçöes atrás referidas levam-nos inevitavelmente a uma visäo catastrófica do quotidiano da ilha do Porto Santo, resultado das prolongadas estiagens, que se sucedem com frequência nos séculos dezoito (1702, 1711, 1715, 1723, 1749, 1751, 1769-70, 1779, 1783) e dezanove (1802, 1806, 1815-16, 1829, 1847, 1850, 1854, 1855, 1883).
A mais antiga referência que temos a uma seca prolongada data de 1589, ano em que foi necessário enviar o gado para a ilha da Madeira, por falta de pastagem. O mesmo sucedeu em 1783 tendo o governador da Madeira recomendado aos agricultores de Machico, Santa Cruz e Porto da Cruz que recebessem o gado até Setembro.
Perante este espectáculo o aparecimento de chuvas era sempre saudado, mas também considerado com apreeensão, pelos efeitos catastróficos que podiam causar. Os Anais registam três anos- 1842, 1857 e 1859- em que a população sofreu com os danos causados pelas chuvas nas casas, na sua maioria cobertas de barro. Para as que caíram nos dias 18 e 19 de Dezembro de 1859 o cronista exclamava que não havia "notícia de tanta chuva acompanhada de ventos tão fortes nesta ilha".
A merecer registado à parte está a queda de neve a 4 de Fevereiro de 1860. Os montes e os vales cobriram-se deste manto branco, perante a estupefacção de todos. Os Anais rematam: "caso virgem entre este povo".
Em 1770 a situaçäo do Porto Santo era caótica. Desde 1769 que o governador Sá Pereira vinha considerando-a como resultado do mau governo a que estava entregue. O lamento da Câmara da ilha, em 15 de Maio, era dramático: as areias quase haviam coberto todas as áreas de cultura e a falta de chuvas tornava impossível qualquer colheita. Como consequência disso as gentes tinham abandonado a sua ilha, tendo já saído cerca de 50 vizinhos. O pedido era apenas para acudir à afliçäo em que se encontravam os poucos resistentes, pois, caso contrário, a ilha estava no grave risco de despovoar-se.
O governador madeirense enviou o sargento-mor Francisco d'Alincourt à ilha com o objectivo de fazer o ponto da situaçäo. O primeiro relatório é um pedido de socorro de trinta moios de milho para serem distribuídos pela Câmara, valor considerado insuficiente se considerarmos que na ilha viviam 866 habitantes, necessitados diariamente de 2 moios, 13 alqueires e 1/4. Ora se considerarmos a colheita estimada em 760 moios dava apenas para cinco meses, ficando nos demais sujeita as remessas de fora.
O projecto apresentado em 9 de Junho de 1769 por Francisco Alincourt para resolver a crise com que se debatia a ilha incluía medidas drásticas, como a reduçäo dos habitantes para apenas 300, mas que fossem trabalhadoras, evitando-se por todos os meios o ócio e o luxo. Mas a crise continuou no decurso do ano seguinte, altura em que foram tomadas algumas providências pela coroa, de acordo com esse relatório. Assim para além da extinçäo da capitania, a coroa criou condiçöes para que os poucos habitantes da ilha se dedicassem à labuta da terra e aprendizagem dos ofícios. Para isso foi nomeado um inspector geral da agricultura da ilha, cargo que foi entregue ao capitäo Pedro Telo de Menezes. Todavia ele näo conseguiu solucionar os graves problemas da ilha, pois, segundo alguns, dedicava-se apenas à caça de pombos e perdizes.
A incapacidade do homem em rodear este problema persistiu até à actualidade. E, tal como refere A. F. Gomes, o portosantense estava condenado a esse triste destino:
- "Num ano mais noutro menos, a estiagem, porém, era certa. Näo chovia. Secavam as fontes, chorava o povo. O gado morria. Lastimava-se amargamente os lavradores, e as autoridades nada podiam fazer. É entäo que esgotadas todas as impetraçöes aos homens da governaçäo soltavam-se as almas aflitas para Deus. Faziam-se preces na igreja paroquial de manhä e à tarde, e o templo enchia-se de fiéis. O pároco numa prece cheia de emoçäo, implorava a misericórdia divina - e as lágrimas corriam nas faces queimadas dos portosantenses".
A ilha foi, insistentemente, martirizada pelo espectro da morte no decurso do século XIX. A seca permanente, só quebrada com as ocasionais tempestades de meados do século, provocou na ilha uma situação de calamidade. A fome foi uma constante, sendo de salientar os momentos de maior aflição dos anos de 1802, 1806, 18156, 1823,1829,18470. Os socorros vindos da Madeira ou de outras partes, eram quase sempre escassos e todas as soluções inventariadas para debelar a crise não surtiram efeito. Por isso muitos saíram esfaimados para a Madeira ou outras paragens à procura de pão, que a sua terra lhes negava. Em 5 de Fevereiro de 1855 foi necessário fazer uma subscrição pública para pagar o frete do transporte de 60 trabalhadores para a Madeira.
Ao espectro permanente da fome veio juntar-se outras situações que agravam o sofrimento do portosantense. Algumas enfermidades, como as bexigas(1859), colera-morbus(1856), febre escarlatina(1857), alargaram a chaga do sofrimento desta gente.
Por fim até o vinho, um dos raros recursos da ilha, também sucumbiu em 1852 pelo ataque do oidium aos vinhedos (...).
Alberto Vieira
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