Os episódios muito chuvosos, em especial os eventos de
precipitação intensa, constituem um dos mais graves riscos naturais existentes
em Portugal. Os eventos de precipitações torrenciais ocorridos no Alentejo e no
Algarve, nos Outonos de 1997 e 2001, são exemplos, relativamente recentes, que
evocam a elevada perigosidade que estas situações meteorológicas podem
representar, no caso particular das regiões meridionais de Portugal. O estudo
sistemático destas situações meteorológicas extremas assume, deste modo, a maior
importância, revelando-se um tema de investigação que tem atraído um número
crescente de especialistas de diferentes áreas científicas, entre os quais os
geógrafos físicos.
Neste relatório divulgam-se algumas das principais
aquisições atingidas numa investigação mais desenvolvida, e que se
consubstanciou na tese de doutoramento intitulada "Climatologia das
precipitações intensas no Sul de Portugal (FRAGOSO, 2003). Trata-se de uma
abordagem climatológica deste tema, envolvendo quer a análise estatística de
dados com vista à verificação da incidência espacial e temporal dos episódios de
chuva intensa no Sul de Portugal, quer o diagnóstico das condições atmosféricas
responsáveis pela sua ocorrência neste domínio geográfico. Os limites da região
estudada são os do território de Portugal Continental que se estende para Sul do
Rio Tejo. O conjunto de resultados que se seleccionou no âmbito da organização
deste trabalho de divulgação diz respeito, essencialmente, ao estudo do contexto
atmosférico que se revela favorável ao desencadeamento dos episódios de
precipitações intensas no Sul de Portugal.
Em relação à diversidade espacial dos episódios de
precipitação intensa, o conjunto das análises realizadas (FRAGOSO, 2003),
permitiu consolidar alguns elementos do conhecimento das características
pluviométricas do Sul de Portugal que, pelo menos em certa medida, já haviam
sido adquiridos (VENTURA, 1994; l996). Os resultados alcançados confirmaram e
reforçaram uma ideia já solidamente estabelecida: a de que, no contexto do Sul
de Portugal, o Algarve constitui uma região com um comportamento particular no
que toca à frequência de ocorrência de episódios de chuvas
abundantes.
Este traço de singularidade marcante do clima do
Algarve revela-se na análise de diferentes parâmetros, desde logo, no estudo das
séries de precipitação máxima diária (período 193 1/32-1994/95), em relação às
quais, as estações do Algarve, de um modo geral, se destacam em relação às do
Alentejo e do Ribatejo. Em primeiro lugar, as suas séries de precipitações
máximas diárias compreendem valores, de um modo geral, mais elevados; Por outro
lado, nas estações algarvias regista-se uma mais forte variabilidade interanual
das precipitações máximas diárias. Por outro lado, ainda, os episódios extremos
de precipitação têm, no Algarve, um período de retorno mais
curto.
O estudo estatístico das precipitações diárias de um
período de quinze anos hidrológicos (l983/84-1997/98) permite concretizar alguns
aspectos da diversidade espacial deste parâmetro. Da base de dados constituída,
foram subtraídos dois inventários, com o objectivo de constituir amostras
representativas de dias de “precipitação abundante» (P ³ 40mm) e «muito
abundante» (P ³ 100m).
No período analisado, as ocorrências de dias de
precipitação «muito abundante» (P ³ 100mm) concentraram-se, sobretudo, na região
algarvia, e de modo especial nas suas áreas mais montanhosas, tendo-se observado
uma frequência máxima de casos (10 dias em l5 anos) em estações situadas nas
Serras de Monchique e do Caldeirão. Comparativamente, verificou-se uma maior
incidência de episódios de precipitação muito abundante no Algarve Central e
Oriental que nas áreas do Barlavento.
A importância relativa (%) dos dias de precipitação
«abundante» (P ³ 40mm) em relação ao conjunto dos dias chuvosos é muito variável
de região para região. Esta proporção é muito reduzida nas áreas mais deprimidas
da Bacia do Sado e em grande parte do Baixo Alentejo, onde representa apenas uma
percentagem entre 0,5 a 1% dos dias chuvosos. É no Algarve que se regista uma
maior importância relativa destes episódios no regime pluviométrico,
observando-se uma percentagem que varia entre os 5 e 9% (com máximo no Algarve
Oriental).
A maioria dos dias de precipitação «abundante»
observados (1983-1998) ocorreu no Outono e no começo do Inverno, mas esta
preponderância manifesta-se com variações entre as regiões. No Ribatejo e no
Alentejo veriticou-se um maior número de casos no Outono, enquanto no Algarve,
nomeadamente nas serras do seu interior, a maior frequência de dias de
precipitação «abundante» foi atingida no Inverno (trimestre
Dezembro-Fevereiro).
A determinação dos principais padrões pluviométricos
associados aos dias de chuvas abundantes (P-40mm) constituiu outra abordagem
levada a cabo no âmbito do tratamento dos dados das precipitações à escala
diária. A metodologia adoptada levou à identificação de quatro padrões
fundamentais, nos quais as áreas onde se concentram os máximos de precipitação
poder5o corresponder, consoante os tipos definidos, ao Ribatejo, ao Maciço de
Monchique, ao Algarve Oriental, ou ainda, ao Conjunto dos relevos que constituem
a designada «Serra Algarvia». Mais uma vez, este estudo permitiu confirmar a
maior incidência dos episódios de chuva abundante na região algarvia, com
particular destaque para o seu interior montanhoso.
A caracterização do contexto atmosférico associado à
ocorrência dos episódios de precipitações intensas envolveu diferentes
abordagens, tendo em vista a obtenção de elementos úteis em relação a aspectos
como a identificação das condições de circulação de larga-escala, ou o
reconhecimento das estruturas de meso-escala (sistemas convectivos), passando
pela análise da estrutura vertical da troposfera, que podem fomentar a convecção
e, consequentemente as chuvadas torrenciais no Sul de
Portugal.
A utilização de um método automático de classificação
de padrões de circulação sinóptica permitiu consolidar o conhecimento de alguns
aspectos que caracterizam o contexto atmosférico favorável à ocorrência de
precipitações abundantes no sul de Portugal. Um dado comum aos cinco padrões
identificados nesta classificação diz respeito ao facto de, em todos eles, o
bordo meridional das depressões atingir latitudes subtropicais (ou mesmo
tropicais), determinando a advecção de massas de ar marítimo, quentes e húmidas,
que atingem o Sul de Portugal, nomeadamente através da fachada algarvia. Um
outro aspecto comum aos padrões sinópticos identificados, igualmente importante
para o desenvolvimento da convecção na troposfera, diz respeito às invasões de
ar frio na média e alta troposfera, que se materializam através de profundos
vales depressionários que se estabelecem sobre a fachada ocidental da Península
ibérica (cujos talvegues chegam a atingir a costa marroquina e as Ilhas
Canárias) ou na presença de células de ar frio, isoladas por uma circulação
bloqueada.
A utilização de uma metodologia subjectiva de
classificação de situações sinópticas permitiu pôr em evidência que o contexto
atmosférico deste tipo de fenómenos se caracteriza por uma apreciável
diversidade. A aplicação desta metodologia teve como propósito comparar as
causas meteorológicos dos eventos de precipitação abundante que ocorreram em
dois locais diferentes do Sul do país – Évora e Faro – no período 1962-1992. Os
resultados da classificação demonstram que os tipos de situações sinópticas que,
predominantemente, estão na origem de precipitações abundantes em Évora, são
diferentes dos de Faro. Cerca de dois terços (67.5%) dos eventos de chuva
abundante registados em Évora estiveram associados à passagem de perturbações
frontais muito activas, na dependência estreita da circulação zonal dos ventos
de Oeste ou das suas ondulações. Este contexto atmosférico de escala sinóptica
tem uma importância relativa muito menor na génese dos eventos muito chuvosos
que se registaram em Faro. Nesta estação sobressai, de um modo flagrante, a
frequência de situações sinópticas dominadas pela influência de depressões de
carácter estacionário, relacionadas com um tipo de circulação meridiana lenta
(ou bloqueada) nos níveis médios e altos da troposfera. As depressões
estacionárias associadas a células frias de bloqueio estiveram na origem de
cerca de metade (49%) dos eventos de precipitação abundante registados em Faro.
Neste contexto sinóptico particular, foram as situações marcadas por uma posição
mais meridional dos centros depressionários (a Sul do Algarve ou entre o Algarve
e a ilha da Madeira) que foram responsáveis por um maior número de episódios de
precipitação muito abundante (P>50mm) em Faro.
Estas condicionantes do contexto atmosférico de escala
sinóptica conduzem a uma estrutura termodinâmica muito instável na troposfera. O
tratamento de dados de sondagens aerológicas permitiu proceder a uma tentativa
de avaliação do grau de instabilidade convectiva que se encontra associado à
ocorrência de precipitações torrenciais (eventos com precipitações máximas
superiores a 100 mm em 24 horas, verificados entre 1983 e 1998) no Sul de
Portugal. A análise realizada proporcionou a obtenção de alguns resultados úteis
à caracterização da estrutura instável da atmosfera, deduzida das sondagens de
Lisboa, que se revela favorável à ao desencadeamento dos episódios torrenciais.
O forte gradiente térmico vertical da troposfera, o perfil vertical da humidade
e o elevado teor de vapor de água das massas de ar em presença foram os
principais aspectos que se procurou quantificar no âmbito da avaliação da
magnitude da instabilidade.
Por fim, no último capítulo, sintetizam-se os aspectos
mais importantes de um estudo mais alargado (FRAGOSO, 2003), e que visou
caracterizar o ambiente atmosférico em que se desencadearam alguns dos eventos
torrenciais, ocorridos durante os Outonos de 1997 e 2001, e que atingiram, de
modo especial, a região do Algarve. Apesar de amostra compreender um restrito
número de casos, a escolha dos eventos procurou ser criteriosa, designadamente
no sentido de permitir a exemplificação de distintos modos de organização
espacial dos sistemas nebulosos convectivos ("focalizada", constituindo "bandas
ou alinhamentos” ou “generalizada”). No conjunto da análise dos eventos
torrenciais ressaltou a importância de três aspectos do seu contexto atmosférico
de formação, os quais poderão ser considerados como elementos essenciais para o
desencadeamento das precipitações intensas:
– Circulação depressionária das baixas camadas
condicionada por núcleo de baixas pressões centrados na bacia atlântica
ibero-marroquina (ou nas suas proximidades);
- Presença de uma massa de ar quente e húmida nas
baixas camadas da troposfera;
– Forte instabilidade convectiva (no período
antecedente dos eventos torrenciais).
As condições que acima se destacam podem ser
observadas em contextos muito diversos, nomeadamente, no que se refere à
dinâmica atmosférica na média e alta troposfera. Outros aspectos do contexto
atmosférico poderão também assumir, em situações particulares, uma importância
decisiva como factores favoráveis ao desenvolvimento dos fenómenos convectivos
no Sudoeste da Península Ibérica e nas suas margens, podendo salientar-se os
seguintes:
– Presença de células depressionárias de bloqueio em
altitude, isolando gotas ele ar frio;
– Influência de profundos talvegues na corrente de
Oeste;
– Acção das correntes de jacto (polar e
subtropical;
– Fenómenos de oclusão;
– Evoluções ciclogenéticas de tipo explosivo;
Com as perspectivas de abordagem e os métodos
utilizados nesta investigação procurou-se seguir algumas novas linhas de
pesquisa no estudo das situações atmosféricas responsáveis pelos episódios de
precipitação intensa. Espera-se que a continuidade destas vias de pesquisa, e
uma mais extensa utilização de dados – por exemplo, dados das radiossondagens,
das imagens e dados obtidos por satélites, das imagens de radar meteorológico –
proporcionada por novos meios de análise e processamento automático da
informação, possam contribuir para melhorar, num futuro próximo, o conhecimento
neste domínio científico.
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