Foi comandante
da protecção civil municipal de Vila Nova de Cerveira. Hoje trabalha com
autarquias no Norte e com Espanha. Emanuel Oliveira passou os primeiros dias do
fogo de Pedrógão a fazer simulações que mostram um incêndio inédito na Europa,
ao ponto de técnicos de outros países ficarem em alerta. E avisa que há outras
zonas em maior risco este verão, como Bragança, Guarda e Castelo Branco.
Escreveu
nos últimos dias no seu blogue ‘Fogos Florestais’ que o incêndio de Pedrógão
Grande foi inédito no país. Em que medida?
Quanto às
dimensões não é inédito. Recorde-se o grande incêndio florestal de S. Brás de
Alportel em 2012, o de Picões – Alfândega da Fé em 2013 ou o de Arouca de 2016,
todos com milhares de hectares de área ardida. O comportamento de fogo e tipo
de propagação é que é sem dúvida alguma inédito. Não temos registos de
incêndios desta amplitude com propagação convectiva dominante.
Tem-se
falado de facto de incêndio convectivo. O que significa isto?
Os analistas
classificam os incêndios de acordo com o factor que domina a propagação do
fogo, o que permite adoptar estratégias e tácticas de controlo e supressão mais
aconselháveis e adequadas a cada tipologia. Genericamente definimos três
grandes tipos: os incêndios do tipo ‘vento’, quando é o vento que conduz e
domina a propagação, produzindo perímetros mais alongados e lançando faúlhas e
criando focos secundários (novas ignições) para onde sopra; incêndios do tipo
‘topográfico’, quando a propagação é conduzida e dominada pelas características
físicas do terreno, tais como o declive, a exposição e a rugosidade do relevo
(sendo estes de mais fácil predição da propagação); e por último os incêndios
do tipo ‘convectivo’ ou também denominados de incêndios de combustível, quando
o factor dominante da propagação são os combustíveis, pela sua carga e
disponibilidade, pelo tipo/modelo de combustível (herbáceas, matos, povoamentos
e resíduos florestais), pela sua distribuição espacial e pelo seu estado
fenológico (o estado das fase de vida da planta).
Tem-se
discutido muito o problema dos eucaliptos. Foi determinante?
O problema não
está em ser eucalipto ou outra árvore, tem a ver com ser tudo do mesmo tamanho,
densidade. O que nós tínhamos nesta zona era uma grande mancha florestal que
desde 1991 não ardia. Era mato, pinheiro e eucalipto, tudo muito seco. No
incêndio de Espanha em Doñana era pinheiro manso e ardeu tudo. São incêndios em
que o fogo encontra um combustível todo muito igual e isso faz com que mantenha
um comportamento idêntico de propagação. Se é um comportamento extremo, mantém
esse comportamento. No grande incêndio do Algarve em 2012 não havia eucaliptos
e arderam 23 mil hectares. O problema é que ninguém fala de incêndios passados.
Deitar a culpa ao eucalipto é muito fácil, da mesma forma que é mais fácil
dizer que foi um incendiário do que um relâmpago ou falar do problema das
comunicações.
Diz que
estes fogos são chamados de hungry fires. Já havia alertas para o risco cá?
Hungry Fires é
um termo usado na gíria dos analistas. São os mais complexos e exigentes no
controlo e extinção. A elevada quantidade de combustível disponível para arder
pode produzir a libertação de uma imensa quantidade energia e calor, de tal
forma que pode gerar o seu próprio ambiente, com as manifestações que se
puderam observar no incêndio de Pedrógão. É o caso da coluna convectiva (com
formação de pirocúmulus [nuvens]), com propagação por projecções e novos focos
secundários em várias direcções, ventos erráticos e intensos, remoinhos de
fogo, radiação muito elevada. O Relatório das Mudanças Climáticas publicado em
2014 pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas da ONU
apontava para a alta probabilidade de ocorrência de megafires em Portugal e em
todo o Sul da Europa, ou seja, incêndios que consumirão elevadas áreas
florestais devido a períodos de seca e a episódios meteorológicos extremos, o
que implica que o país se prepare pois vieram para ficar.
É
expectável que o fogo tenha sido causado por uma trovoada, a tese da PJ? Mapas
do IPMA publicados inicialmente não mostravam raios na zona à hora do início do
fogo.
É curioso, mas
existe uma excessiva preocupação sobre a causa, quando a origem pouco importa
quanto à sua influência na propagação ou dimensão que este incêndio alcançou. O
ambiente de fogo é muito mais importante. Desconheço a informação do IPMA, uma
vez que recorro a dados públicos e disponíveis da EUMETSAT recolhidos e
registados pelo satélite METEOSAT, cujas imagens apresentam registos de queda
de raios naquele horário e seguintes. A tese da PJ é fundamentada no método de
evidências físicas para sustentar a investigação, logo se existe uma outra
causa, esta deverá suportar-se igualmente em evidências, pois não basta
levantar suspeições. O facto é que há demasiada entropia e procuram-se
responsáveis, inclusive procurando descredibilizar instituições e organismos,
quando estamos diante de um incêndio inédito, cuja manifestação só víamos nas
notícias de incêndios deste tipo que ocorrem em países como EUA, Austrália e
Canadá. Chegam à Europa através deste grande incêndio.
Tem-se
falado de uma forte instabilidade atmosférica naquele dia. Era previsível?
A instabilidade
atmosférica estava prevista e o próprio IPMA faz referência à instabilidade que
poderia desencadear trovoada e aguaceiros na região afectada. Os nossos colegas
dos serviços florestais das comunidades autónomas de Espanha (Extremadura e
Andaluzia, por exemplo) alertavam no dia 16 pelos seus órgãos oficiais para o
potencial de incêndio convectivo. Esta situação de forte instabilidade
atmosférica leva a um aumento do potencial convectivo, pelo que a ocorrência de
um incêndio num espaço com elevada carga de combustível e muito susceptível,
levaria facilmente à formação de coluna convectiva e ao domínio da propagação
do incêndio. Seria tão destrutivo quanto a quantidade de combustível disponível
e susceptível para alimentar o fogo. Quem trabalha na análise de incêndios e
conhece a meteorologia associada, recorre a métodos de previsão, tais como o
Índice de Haines e/ou o Índice Contínuo de Haines, muito usado na Austrália
para determinar o alerta para incêndios convectivos e, no caso de Pedrógão
apresentava-se em intervalos de valor máximo, o que significa que em caso de
incêndio, este seria incontrolável e extremamente difícil de extinguir.
Pedrógão estava
no risco máximo para incêndios convectivos. Não temos ninguém a fazer
meteorologia de incêndios.
Não
devia ter havido esse alerta por parte das autoridades?
O problema é que
Portugal tem um sistema de prevenção todo repartido. Em Espanha, por exemplo,
prevenção, vigilância e combate está tudo no mesmo organismo. Mesmo ao nível da
meteorologia, a agência espanhola envia os dados directamente aos serviços
florestais de cada comunidade e os serviços locais é que interpretam o risco de
incêndio. Cá não temos ninguém nem no IPMA nem nos serviços florestais a fazer
meteorologia de incêndios. Tínhamos especialistas no Grupo de Análise e Uso do
Fogo (GAUF) que terminou em 2010, mas mesmo este grupo focava-se mais no uso do
fogo do que na análise, quando precisamos de ter vários tipos de analistas a
trabalhar. Os que ficam na retaguarda quando há um incêndio para conseguirem
ter acesso a dados de satélite sem interferência de comunicações, os que estão
no terreno a recolher indicadores e os que trabalham todo o ano. Não temos nada
disto. E temos um problema grave nas universidades: os nossos cursos de
Engenharia Florestal focam pouco estas matérias. É ensinada a engenharia dos
anos 70 e 80 e isso não nos ajuda a estar minimamente preparados.
Tem
feito simulações deste fogo. Como foram as primeiras horas?
Os simuladores
permitem-nos identificar os principais eixos de propagação, ou seja, o caminho
mais provável que o fogo irá seguir. Tendo por base os dados das estações
meteorológicas mais próximas, nos primeiros minutos a velocidade de propagação
terá rondado entre 1500 a 2500 m/h. Com o aumento da instabilidade e da
velocidade do vento nas horas seguintes, terá levado a propagações superiores a
5000 m/h. Daí que no final de 24 horas de incêndio, a área alcançada já era de
milhares de hectares. Tudo indica que o incêndio se abriu, ramificando-se em
diversas direcções, muito favorecido pela propagação por focos secundários que
deram origem a novos incêndios que interagiam entre eles – típico dos incêndios
convectivos.
Tem-se
falado de um fenómeno de downburst, como que um tornado que cuspiu fogo em
várias direcções. Tem noção da distância percorrida pelas fagulhas ou de
quantos focos foram lançados?
Pode ter
ocorrido o fenómeno de downburst, no entanto estamos a falar de incêndio
convectivo e só por si este tipo de incêndio numa atmosfera tão instável assume
normalmente um comportamento extremo, lançando material incandescente em
diversas direcções e a longas distâncias, bem como gerando remoinhos de fogo.
Quanto aos focos secundários é difícil de estimar, no entanto devem ter
ocorrido inúmeros e em intervalos de distância entre 100 e 1000 metros ou até
superior.
Alguns
relatos sugerem que a certa altura o vento mudou, o que terá surpreendido as
pessoas que circulavam na estrada EN236-1. Que sinais existem disso?
Para além dos
relatos dos operacionais no teatro de operações, os registos meteorológicos
confirmam as previsões de diversos modelos meteorológicos quanto aos ventos
gerais com mudanças de 90º e variando de intensidade, o que para além de
colocar em risco a segurança dos combatentes, tornava as operações de controlo
e extinção muito difíceis. Esta situação de variabilidade do vento é
incrementada nos ventos de superfície (inferiores a 10 metros de altura), que
se desenvolvem devido à rugosidade do terreno, muito recortado, podendo ser
muito diferente ao vento geral e pouco previsível. A interacção dos ventos
gerais com os ventos de superfície torna as operações de combate muito difíceis.
A
estrada nacional 236-1 era um local de risco? Poderia ter sido cortada?
Quer a EN 236-1
quer o IC-8 eram locais de risco, tais como os aglomerados populacionais. Num
incêndio destas proporções e de tamanha complexidade, todo aquele espaço é um
‘cenário de guerra’ pelo que não sabemos onde a ‘bomba vai cair’. Na maioria
dos casos o confinamento é melhor do que optar por fugir e isso vemos no
comportamento das comunidades rurais mais habituadas a lidar com o fogo,
normalmente resistem à saída das suas casas e aldeias, optando por acções de autoprotecção.
Mas não
se poderia ter evacuado mais aldeias?
O que vemos é a
que a maior parte das pessoas que morreram estavam em fuga e algumas pessoas
que ficaram nas aldeias, mesmo sozinhas, conseguiram proteger os seus bens. Mas
falta uma maior cultura de risco. Não se limpam os terrenos, muitas vezes nem à
porta de casa. Obviamente que neste tipo de incêndios a dificuldade do combate
é maior e o dispositivo de combate e o próprio país não estavam preparados. Os
inúmeros focos secundários e o povoamento disperso numa paisagem tão
combustível não permitiriam com certeza atender a todas as solicitações. O que
é preciso perceber é que isto era uma bomba relógio. Desde 1991 que não ardia e
isso foi um problema grave.
Há
outras zonas do país na mesma situação?
Para este ano?
Bragança, Guarda, Castelo Branco. Basicamente toda a zona Centro à excepção do
que ardeu no ano passado e este ano.
Disse
que o país não está preparado. Porque nunca aconteceu ou porque também não há
formação?
Pelas duas
coisas. Por um lado temos o facto de este incêndio ter sido uma surpresa até na
própria Europa. A repercussão foi de tal ordem que os colegas espanhóis,
franceses e italianos começaram a preparar-se para incêndios com esta
violência. Já se prevista isto, mas foi tudo reforçado. Agora também falta
formação. Se compararmos por exemplo com Espanha, lá têm um dispositivo muito
mais profissionalizado. Os voluntários fazem sempre falta mas não se pode
responsabilizar voluntários nem obrigá-los a dominar toda as matérias. Em
Espanha há bombeiros urbanos, florestais e industriais. E não tem nada a ver o
que recebem com o que se passa cá, em que têm uma espécie de gorjeta. Em
Espanha o salário ronda os 1000 euros e há empresas que são contratadas para
reforçar os serviços que até exigem formação em ciências florestais.
Fogos
como este vão tornar-se mais frequentes?
Os grandes
incêndios têm sido uma presença constante em Portugal. O despovoamento, o
fenómeno de renaturalização ou assilvestramento das nossas paisagens devido ao
abandono do meio rural estão a contribuir para a homogeneização destas
paisagens, em particular no interior Norte e Centro, o que é um factor de
risco. Os grandes incêndios florestais também têm tido um potencial papel
modelador da paisagem. Têm uma dupla acção: por um lado, têm um efeito directo
sobre a paisagem, causando sérios danos e prejuízos e por outro lado provocam a
homogeneização da paisagem e do combustível.
Como
assim?
Aquilo que tenho
vindo a investigar é que as paisagens que no passado sofreram os efeitos de
grandes incêndios têm vindo a perder a diversidade que as caracterizava,
transformando-se em grandes massas de território com um mesmo modelo
combustível, com a mesma idade, altura, carga e disponibilidade. Quando o fogo
alcança uma paisagem com estas características, vai ter um comportamento
idêntico e só altera quando encontrar condições de combustível diferentes.
Todos estes factores associados às mudanças climáticas indicam que a situação
como as vividas em Pedrógão Grande e Góis voltarão a ocorrer em outras zonas do
país, inclusive podendo voltar a repetir-se neste ano, independentemente da
época.
Que tipo
de ilações se deviam tirar em termos de prevenção?
Já todos puderam
verificar que o paradigma dos grandes incêndios florestais está em mudança devido
às mudanças na paisagem nas últimas décadas, o que implica que a prevenção seja
planeada e sobretudo implementada tendo em consideração o potencial consumo e
propagação de um grande incêndio florestal. Importa que a partir deste momento
as acções de prevenção tenham uma escala de paisagem, ou seja de base regional
e supramunicipal, em vez de acções de carácter isolado de cada município. Já se
viu que essas não têm sido eficazes para este tipo de incêndios que apesar de
serem recorrentes têm vindo a aumentar a sua extensão. E obviamente, importa
integrar analistas de incêndios que possam durante o ano monitorizar as
diversas variáveis determinantes no risco potencial de incêndios. É uma lacuna
no nosso sistema de prevenção e de combate.
Nesta
região afectada, que cuidados/acções pensa que são imprescindíveis nos próximos
tempos?
Ainda não
avaliei a severidade deste incêndio na paisagem afectada no entanto importa que
se actue o mais rápido possível na implementação de acções de protecção do
solo, na avaliação de zonas de potencial movimento de vertentes e na
identificação e actuação sobre zonas com riscos de enxurradas. Estes são alguns
exemplos de acções importantes no imediato, pois não sabemos o que nos reserva
a meteorologia nestes meses de verão, onde episódios extremos poderão ocorrer.
No meio
de tudo isto, dá para perceber o que pode ter falhado?
Não podemos
especular. Como é que se controlou o incêndio em Espanha dias depois? A
situação meteorológica mudou mas eles avançaram logo com tudo.
Se a
temperatura não tivesse baixado teria sido mais difícil travar o fogo?
Não é tanto a
temperatura mas a instabilidade atmosférica. Nós já tivemos incêndios em pleno
verão em que o dispositivo esteve à altura e respondeu muito bem, o problema é
que este incêndio não teve nada a ver com os outros. São fogos muito violentos.
Víamos incêndios destes na Austrália, no Canadá – as imagens de satélite que
estamos a ter são idênticas, com nuvens negras a lavrar floresta. Lá também
morre muita gente, mas não têm um povoamento disperso como nós temos e uma
floresta abandonada, o que aumenta o risco.
Já falou
de algumas diferenças entre Portugal e Espanha. Mas o que explica que
continuemos a ter sistematicamente a maior área ardida do Sul da Europa?
Ao nível da
prevenção estrutural não há grandes diferenças, assim como também não há ao
nível físico e ambiental. O Norte e Centro de Portugal é muito semelhante à
Galiza. Existe sim uma política de gestão florestal que tem vindo a
valorizar-se. Por outro lado, é a tal questão que referi: o combate em Espanha
é exclusivamente da responsabilidade dos serviços florestais, bem como a
vigilância e a prevenção estrutural, cujo dispositivo de extinção é reforçado a
partir de Março até finais de Outubro, dependendo da comunidade autónoma.
Portugal teve grandes melhorias na primeira intervenção, contudo dentro das
milhares de ocorrências registadas, cerca de 1% destas origina grandes
incêndios florestais que resultam em mais de 70% da área total ardida. Estes
números obrigam-nos a repensar quer a prevenção, a vigilância e a resposta do
combate e, muito provavelmente, esta distribuição de competências por três
organismos e dois ministérios também não tem favorecido a melhoria do sistema
desejável para a redução da área ardida.
Como vê
a organização da Protecção Civil?
Melhorou muito
nos últimos anos e procura melhorar, contudo o facto de depender de terceiros,
de várias origens e formações, torna muito complexa a integração e a unidade
necessária, pois na maioria dos casos as estruturas envolvidas não se revêem
nessa unidade. Daí que para fazer frente aos incêndios florestais o caminho
deveria ser semelhante ao adoptado na maioria dos países da Europa, ou como nos
EUA, Austrália ou Canadá. E precisamos de mais analistas. Temos alguns que
acabaram por ir para fora. O engenheiro Pedro Palheiro que fazia parte do GAFO
está responsável por uma grande área de fogo controlado na Austrália. Lá foi
reconhecido. Precisávamos de pessoas como ele para este tipo de incêndios e o
país não lhe deu condições para ficar.
Sente
que é desta que as coisas vão mudar?
Espero que sim,
se não creio que ainda este ano vamos ter uma repetição deste tipo de incêndio.
Se não for este ano é para o ano, pode ser a qualquer momento. Se não
estivermos melhor preparados não sei como vai ser. A resposta tem de ser
adequada ao tipo de incêndios, há estratégias, recomendações para cada um. Nós
cá continuamos a falar de incêndios genericamente, lá fora fala-se dos três
tipos, do que se passa em cada frente. Há muito para melhorar.
Marta F. Reis
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Fonte: Jornal I
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