terça-feira, 11 de setembro de 2018

6877. A vida que a chuva levou

(Eduardo Gageiro)

Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967 mais de 500 pessoas morreram numa enxurrada que arrasou as zonas mais pobres da região de Lisboa e Vale do Tejo. Foi o maior desastre natural em Portugal desde o terramoto de 1755. A ditadura de Salazar quis silenciar a tragédia, que marcou o despertar político de toda uma geração.

Texto Joana Pereira Bastos*, fotos de Eduardo Gageiro 
 
Muitos já dormiam quando a desgraça chegou. Guilhermina, 16 anos, apagara o candeeiro a petróleo pouco tempo antes e adormecera na cama de ferro, com a mão sobre a barriga que guardava o filho a poucos meses de nascer. Era quase meia-noite e faltavam cinco horas para se levantar e caminhar mais de cinco quilómetros até à fábrica da conserveira nacional, onde descascava marmelos a troco de 20 escudos por mês. Nunca chegou a ir trabalhar. Acordou com os gritos do pai e com o barulho de uma torrente de lama a entrar de rompante na pequena barraca de lusalite onde viviam. Em segundos, a água, barrenta e viscosa, chegou-lhe à cintura. Depois ao pescoço.
Com a ajuda do pai, subiu para o guarda-vestidos e ergueu-se até ao telhado, graças ao vizinho que, em seu auxílio, partira algumas telhas para a deixar sair. Atrás dela foi a irmã Graça, de 6 anos, e a mãe, que carregava no colo um bebé de seis meses, o último dos oito filhos. Há horas que não parava de chover. Tanto que o pequeno rio da Costa, o estreito braço do Trancão onde todos os dias iam buscar água para se lavarem, transbordara subitamente, engolindo muitas das barracas da zona. A casa onde moravam duas irmãs de Guilhermina era das que ficavam mais próximas do rio. Guilhermina chamava por elas o mais alto que conseguia, mas os apelos perdiam-se no meio de tantos outros.
Destruição. A enxurrada matou famílias inteiras. Mas ninguém até hoje sabe dizer o número total de vítimas
Eduardo Gageiro
A escuridão era total. A inundação cortara a electricidade aos candeeiros que iluminavam as ruas da Urmeira (Loures), um dos muitos bairros de lata que, na década de 1960, se multiplicaram em todos os subúrbios de Lisboa. Com a camisa de noite coberta de lama e de sangue, Guilhermina abraçou-se à mãe no cimo da frágil barraca que a qualquer momento ameaçava desabar. Num ápice, a mãe escorregou até à ponta do telhado e deixou cair o bebé que segurava nos braços. Desesperada, quis lançar-se à água para o salvar, mas Guilhermina agarrou-a. A mulher, que a miséria tornara velha em nova, ali ficou, enlouquecida de dor, a berrar pelos filhos. E Guilhermina a gritar pelos irmãos.
“Ouvia-se um barulho que parecia de metralhadoras. Era o som das casas a partirem-se e a desabar. E ouviam-se muitos gritos. ‘Acudam, acudam’. Depois os gritos passaram a gemidos. E ficaram cada vez mais sumidos até não se ouvir mais nada”, recorda Guilhermina, hoje com 66 anos.
Depois de muito tempo de escuridão, uma lanterna deixou finalmente ver a desgraça que só os estrondos e os gritos deixavam adivinhar. O longo foco de luz tinha um alcance de quase 200 metros, distância que separava Guilhermina e os outros desesperados que pediam ajuda aos impotentes bombeiros que não os conseguiam salvar. Entre uns e outros, erguera-se uma torrente de dor e morte feita de lama e destroços que tornava impossível o resgate.
“Já estava a ficar muito fraca de tanto gritar quando vi, ao longe, o foco de luz, que corria o bairro todo. Só aí é que conseguimos ver a altura da água e a destruição. Os bombeiros gritavam para termos calma. Diziam: ‘Agarrem-se, nós já vamos buscar-vos’. Mas não vinham. Não podiam acudir-nos por causa da tromba de água. E nós começámos a perder as forças”.
José Marques, então com 31 anos, estava do outro lado da luz. Era ele que segurava a lanterna. “Víamos as casas e ouvíamos as pessoas a gritar. Víamos a luz das velas ou dos candeeiros a petróleo lá dentro e as casinhas a ir com a água. Pareciam barcos. A maior parte desapareceu com a corrente. Famílias inteiras a irem pelo rio abaixo e eu sem poder ir lá salvá-los. Se fôssemos para dentro de água tínhamos ido também. Não podíamos fazer nada. Era deixá-los ir”. O bombeiro do quartel de Odivelas não conteve as lágrimas na altura. Nem as sustém agora, 50 anos passados, ao recordar a noite trágica de 25 para 26 de Novembro de 1967.
A chuva que naquele sábado caíra ao longo de todo o dia na região de Lisboa e Vale do Tejo transformou-se em dilúvio ao anoitecer. Entre as 19h e as 24h choveu cerca de um quinto de toda a precipitação média anual. Em minutos, rios e ribeiras galgaram os leitos, ruindo prédios, desabando casas, derrubando pontes, aluindo enormes massas de terra e arrastando com impiedosa violência tudo o que havia pela frente.
A enxurrada matou famílias inteiras. Como a família Garrido — Adelino, de 43 anos, e Amélia, de 36, e os cinco filhos de 2, 5, 7, 9 e 10 anos, que moravam na Quinta da Quintinha, na Póvoa de Santo Adrião. Ou a família Madureira — José e Maria e a filha Conceição, de 9 anos, em Ribeira de Lage, Oeiras. Ou Maria do Céu Patrocínio, mãe solteira de Alice, de 4 anos, e Maria de Jesus, de 1, que com ela morreram em casa, na Venda Nova (Amadora). Ou os três irmãos Bártolo — Carlos, de 3 anos, Graça de 2, e a bebé Paula de 3 meses, na aldeia de Lopas, em Sintra. E uma lista de centenas de outros nomes que até hoje ninguém sabe dizer onde termina.
“Foi o desastre natural de maior dimensão que tivemos em Portugal a seguir ao terramoto de 1755”, explica o geógrafo e investigador da Universidade do Minho Francisco Costa.
A ditadura nunca permitiu que se soubesse o número exacto de mortos. A censura entrou em acção praticamente desde o primeiro momento para evitar que a comoção geral se transformasse numa crítica política ao regime de Salazar. Logo a 27 de Novembro, um telegrama da Direcção da Censura frisava que era “conveniente ir atenuando a história”. “Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso”. Dois dias depois, a ordem dada aos jornais era mais concreta: “Os títulos (das notícias) não podem exceder a largura de meia página e vão à censura” e não era permitido fazer referência “ao mau cheiro dos cadáveres”.
A contagem dos mortos foi suspensa poucos dias após a tragédia. Os últimos números oficiais, publicados nos jornais no início de Dezembro, davam conta de 462 vítimas mortais. Depois disso, muitos corpos continuaram a aparecer. Nas conservatórias dos concelhos mais afectados, como Loures e Odivelas, há dezenas de atestados de óbito de pessoas mortas na enxurrada que só foram encontradas muito tempo depois da última contagem. Algumas até em Janeiro. E muitas outras terão ido parar ao Tejo e nunca chegaram a aparecer.
“Há vários estudiosos que apontam para 700 mortos. Outros dizem que foram mais de 500. Será um número entre esses dois valores. Infelizmente, não é possível saber”, lamenta o geógrafo.

Não foi a chuva, foi a miséria – Naquela noite, grande parte de Lisboa ficou inundada. A água irrompeu pelo Cinema Éden, nos Restauradores, obrigando os 150 espectadores que assistiam ao filme na plateia a refugiarem-se no balcão. Tiveram de esperar até à uma da manhã para serem socorridos pelos bombeiros, que chegaram à sala em barcos de borracha. Na Baixa, na Avenida da Liberdade, na Praça de Espanha, em Campolide, na Avenida de Ceuta e em muitos outros locais só se passava de barco. Apesar da violência do dilúvio, só houve registo de três mortos nos bairros residenciais da cidade. E nenhum na zona abastada do Estoril, onde se atingiu o valor máximo de precipitação.

Foi nos bairros de lata à volta de Lisboa, como a Urmeira (Loures) ou a Quinta do Silvado (Odivelas), erguidos clandestinamente pelos que fugiam à miséria do campo, que a desgraça mais se abateu. E nas zonas pobres dos concelhos a norte da capital, como Vila Franca de Xira, Alenquer ou Arruda dos Vinhos. Sem saneamento básico nem canalizações, construíam-se barracas ou pequenas casas de adobe o mais perto possível de rios e ribeiras, de que as populações dependiam diariamente para ter água. Um dia, mais tarde ou mais cedo, o pior haveria de acontecer. Era uma tragédia anunciada.
Apesar da censura, o “Comércio do Funchal”, lido sobretudo pela juventude mais politizada, apontou directamente o dedo às causas sociais da catástrofe, que o regime forçara a atribuir exclusivamente à fatalidade natural. “Nós não diríamos: foram as cheias, foi a chuva. Talvez seja mais justo afirmar: foi a miséria, miséria que a nossa sociedade não neutralizou, que provocou a maioria das mortes. Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando se morre por o ser”.
Como muitos dos que moravam nos subúrbios de Lisboa, ou em grande parte do país, Manuel Júlio dos Santos nascera assim. Com a pobreza colada à vida como o apelido se cola ao nome. Tinha 10 anos e já trabalhava numa carpintaria, a apanhar do chão aparas de madeira a troco de dois tostões por dia, para ajudar a mãe a criar a irmã, quatro anos mais nova. Os três viviam na Ponte de Frielas (Loures), uma das zonas mais atingidas pelas inundações, numa casa baixa e escura de uma única janela, tão pequena que não cabiam duas camas. O rapaz tinha de dormir colado ao teto, num sótão apertado onde não se podia pôr de pé. Foi esse sótão, improvisadamente construído, que os salvou naquela noite.
Pobreza. Foi nos bairros de lata erguidos clandestinamente à volta de Lisboa pelos que fugiam à miséria do campo que a desgraça mais se abateu
Eduardo Gageiro
Emília, a irmã de seis anos, dormia em baixo, na cama da mãe. Já se haviam deitado há muito quando, por milagre ou fortuna do acaso, a menina acordou para ir à casa de banho. Quando pôs os pés no chão, a água chegava-lhe aos joelhos. Só tiveram tempo de se levantar e correr para junto de Manuel. Mal subiram, uma onda espessa de mais de dois metros de lama entrou pela casa, derrubando as escadas do sótão. Foi lá que se refugiaram os três, com a água a rasar-lhes os pés, a ouvir o desespero da vizinha da frente, uma idosa acamada que não pôde fugir.
“Foi uma coisa de segundos. Foi como se tivesse rebentado uma piscina e a água saiu toda. Vinha água, lama, bocados de madeira que batiam contra os muros. Ouvíamos animais a gritar e carros a serem arrastados e a bater nas paredes. E ouvíamos os gritos horríveis da Dona Bárbara a morrer afogada”, recorda Manuel, hoje com 59 anos.
Se Emília não tivesse acordado segundos antes, a menina e a mãe não teriam sequer tido tempo de se levantar. Como os 14 homens que morreram na taberna ao fundo da rua. Foram encontrados no dia seguinte, com os corpos feitos estátuas de lama, na exacta posição em que se encontravam no momento em que o Trancão transbordou: sentados a jogar às cartas nas mesas de madeira onde passavam as noites a beber.
Manuel, Emília e a mãe esperaram toda a noite que a água baixasse para conseguirem saltar do sótão. “Quando saímos era o horror. Havia galinhas, vacas e porcos mortos que tinham sido trazidos pela água. Lembro-me de um autocarro de pernas para o ar, todo cheio de lama e ainda com as pessoas lá dentro. Havia carroças, troncos de árvores caídas, pessoas mortas, carros virados ao contrário. E muitas pessoas sem nada, algumas inclusivamente nuas”, descreve.
Durante três dias ninguém apareceu para ajudar quem tudo perdera. Nada restava das hortas que antes cresciam junto às casas. Nem dos animais que criavam para comer. Naquela zona todos se tinham habituado a enganar o estômago com caldos engrossados a farinha e fatias de pão duro cobertas de bolor. Mas depois da tragédia a fome apertou ainda mais. “Ao início, não tivemos auxílio nenhum. Havia umas quintas aqui para cima que não tinham sofrido nada e íamos lá roubar laranjas. Só assim conseguimos comer alguma coisa”, recorda.

O despertar político – A inoperância do regime perante a tragédia e o abandono das populações deixaram chocados os mais de seis mil estudantes universitários que se envolveram numa enorme campanha de auxílio às vítimas das cheias, organizada conjuntamente pela Juventude Universitária Católica (JUC) e pela Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico. Quando, no dia 29, se puseram a caminho das zonas mais atingidas, os jovens estavam longe de imaginar que, três dias após a catástrofe, estava quase tudo por fazer. Ainda havia corpos caídos nas ruas e nas casas, árvores, animais e gente soterrados no chão.

Organizados em brigadas, estudantes universitários de Lisboa, Porto e Coimbra, e muitos ainda do Liceu, distribuíram diariamente mais de mil sacos de comida à população, vacinaram milhares de pessoas contra a febre tifóide e ajudaram a lavar a roupa, a esfregar o chão e a limpar as casas. Em muitas estavam ainda gravadas nas paredes e no teto marcas das mãos de homens, mulheres e crianças que, em desespero, haviam tentado alcançar o telhado para se salvar.

 

Perda. Manuel, a criança que se vê na fotografia publicada na “Life Magazine”, refugiou-se no sótão durante toda a noite, com a mãe e a irmã, à espera que a água baixasse. “Quando saímos era o horror”
foto Terence Spencer/The LIFE Picture Collection/Getty Images

Para a grande maioria dos estudantes, quase todos vindos das elites, o socorro às vítimas das cheias foi um embate brutal com a realidade. Foi aí, ao caminhar sobre um caos de lama, destroços, escombros e cadáveres, que conheceram um país feito de lata que nunca antes tinham imaginado ser o deles. “Foi a primeira vez que saíram da sua redoma e se aperceberam das condições em que uma grande parte da população vivia. Para muitos, foi um choque, que acelerou a sua politização. Foi um momento muito importante no seu despertar político”, explica Miguel Cardina, investigador da Universidade de Coimbra.
Para alguns estudiosos da história portuguesa contemporânea, “as inundações de 1967 tiveram mesmo um papel tão importante na consciencialização política do movimento estudantil em Portugal como Maio de 1968 teve depois no movimento estudantil mundial”, diz a historiadora Irene Pimentel, que, à época, então finalista do liceu, também participou na campanha de solidariedade. “Foi o momento-chave que marcou o divórcio pleno dos estudantes com o regime”.
A ditadura fez de tudo para os afastar das acções de socorro à população. No Vale do Carregado, a GNR chegou mesmo a investir sobre os estudantes e, no Rossio, um grupo de jovens de capa e batina que se encontrava a fazer um peditório a favor das vítimas foi detido pela polícia por distúrbios à ordem pública.
A censura tinha ordens para cortar muitas das notícias que davam conta da solidariedade dos alunos. A conferência de imprensa que os estudantes organizaram para denunciar a “impreparação e desorganização dos organismos sociais e sanitários do Governo” e a existência de “condições de vida miseráveis em várias localidades do país” foi silenciada. “Compareceram jornais portugueses e alguns correspondentes estrangeiros. Os jornais portugueses não publicaram nada, mas no estrangeiro saíram notícias. Em resultado disso, toda a direcção da Associação de Estudantes foi convocada para ir prestar declarações à PIDE”, conta Armindo Fernandes, então vice-presidente da Associação de Estudantes do Técnico.
Com medo das repercussões no exterior, a polícia política apertou o controlo sobre as agências noticiosas estrangeiras que acusava de estarem a publicar peças tendenciosas sobre a forma como o Governo estava a lidar com a catástrofe. “Os correspondentes estrangeiros foram chamados para interrogatório e alguns foram mesmo expulsos do país”, conta Irene Pimentel.
Ainda assim, a notícia da tragédia chegou a toda a Europa, gerando um movimento de solidariedade internacional. Chegaram donativos da rainha de Inglaterra, do príncipe Rainier do Mónaco e até do general De Gaulle, que fez chegar uma “dádiva pessoal” de 30 mil francos.
“Foi um grande escândalo no exterior. As inundações pioraram a imagem de um país que já era mal visto porque tinha uma guerra colonial que não terminava. E, além de tudo mais, era um país que não cuidava dos seus próprios cidadãos”, lembra a historiadora.

A “aldeia mártir” – As imagens de bairros inteiros convertidos em cemitérios de lama correram o mundo pela lente de fotógrafos de prestigiadas revistas internacionais como a “Life Magazine” ou a “Paris Match”. O caso de Quintas, a pequena povoação de Castanheira do Ribatejo (Vila Franca de Xira) que naquela noite perdeu quase 100 dos seus 156 habitantes, foi dos que causaram maior comoção.

A morte chegou à “aldeia mártir” às 01h50 da madrugada. Era o que marcava o relógio parado no pulso da menina encontrada no dia seguinte completamente nua a boiar no rio. Faltavam poucos dias para Teresa fazer 15 anos. Estava a dormir em casa dos avós quando o Rio Grande da Pipa se fez largo e revolto como o mar, engolindo quase toda a aldeia. Salvaram-se os que viviam na encosta. Na parte mais baixa não restou quase ninguém.
Perda. Guilhermina e o filho junto à casa prefabricada que a família recebeu dois anos após a tragédia
Eduardo Gageiro
O corpo de Teresa foi dos primeiros a serem encontrados. Um a um, os cadáveres retirados das casas ou resgatados da água foram sendo alinhados, todos muito juntos, no largo da aldeia para serem lavados da lama. Família inteiras deitadas lado a lado em cima dos escombros, no meio de caniços e raízes de árvores arrancadas ao chão.
Luísa, irmã mais nova de Teresa, tinha 13 anos. A enxurrada levou-lhe a irmã, os avós e mais 27 tios e primos. Numa aldeia pequena, quase todos eram aparentados. Naquela manhã, entre o silêncio dos mortos e o choro dos vivos, Luísa tornou-se mulher adulta. Vestiu-se de preto da cabeça aos pés, tapou o cabelo com um lenço e foi forçada a assumir o governo da casa dos pais, que sucumbiram à dor.
“A minha mãe ficou completamente sem saber fazer nada. Passava as noites inteiras a chorar e de dia só queria estar no cemitério. Eu tive de crescer e ser mulher à força”, recorda Luísa Fajardo, hoje com 63 anos. Na altura não se falava em depressão, muito menos em ajuda psicológica. Feitos os enterros e findos os trabalhos de limpeza, os poucos habitantes que sobreviveram às cheias ficaram entregues a si próprios, sozinhos numa terra enlutada pelo infortúnio.
“O negro permaneceu na aldeia muitos anos. Oito ou dez, pelo menos, tanto nos homens como nas mulheres. Conforme o tempo passava, maior era a saudade. Nós a querer fazer a nossa vida, a casar, a ter filhos, a ter netos, a querer compartilhar isso e a não ter com quem. Ninguém conseguiu ultrapassar, nem mesmo ao fim de 50 anos”.
O pequeno largo da aldeia que antes era o centro do convívio da comunidade tornou-se o retrato do seu desalento. Toda a parte baixa do Lugar das Quintas foi considerada zona inundável e foram proibidas novas construções. As pequenas casas térreas onde tantos morreram na cama estão hoje ao abandono ou foram transformadas em oficinas e arrecadações.
“Aqui, onde agora funciona uma oficinazita que está aberta aos fins de semana, morava a irmã da minha mulher, mais um filhote de nove anos e o marido. Ficaram os três lá dentro. Ao lado, moravam os tios da minha mulher. Ficaram lá os dois. Aqui em frente havia uma viúva mais uma filha de 17 anos. Também ficaram lá as duas. A seguir outra viúva, que morreu também. Nesta terrinha pequena, morreram 93. Ficámos muito poucos”, conta Joaquim Rodrigues, hoje com 88 anos, apontando, uma a uma, com a voz embargada, as casinhas do largo.
Joaquim lembra-se todos os dias do que aconteceu. E todos os dias os olhos se lhe enchem de lágrimas. Vivia com a mulher e o filho de 11 anos naquele mesmo largo, numa dessas frágeis casas de adobe, com um único quarto. O rapaz já dormia no sofá da sala quando, pela meia-noite, o casal se foi deitar. A mulher, ou “camarada” como sempre lhe chamou, olhou pela janela. Chovia muito. “Ainda bem que estamos todos abrigados”, comentou. Pouco depois, a água irrompeu pela porta. “Ai, nossa senhora, o que é isto?”, gritou a mulher. Foram as últimas palavras que lhe ouviu.
“A minha mulher levantou-se rápido para ir buscar o candeeiro a petróleo e nunca mais a vi. Agarrei o moço, consegui pôr uma mão na greta que faltava para tapar a porta e lá conseguimos sair os dois. Nesse momento, a água já estava mais alta do que a porta e ajudou-nos a subir para o telhado. Tirei três ou quatro telhas para ver se ia buscá-la, mas a água já ia até ao sótão. Pensei: ‘O que é que lá vou fazer? Ela já está morta’. Era tanta lama e tanta lenha, tanto lixo e tanta coisa que ela não teve hipótese”.
Joaquim e o filho ficaram agarrados a um barrote do telhado até amanhecer, enregelados e molhados até aos ossos numa noite fria e escura de Novembro. Passado algum tempo, os últimos gritos calaram-se. “Ficou até um sossego. O que é que interessava estar a gritar? Já não havia solução”.
Nessa altura, a 40 quilómetros de distância, Guilhermina também esperava em cima do telhado. Também ali os gritos tinham dado lugar a gemidos e tinham ficado cada vez mais sumidos até não se ouvir mais nada. A rapariga de 16 anos, grávida de seis meses, já tinha perdido as forças quando a água baixou e, já de manhã, os bombeiros puderam finalmente ir resgatá-la. Levaram-na inanimada para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Foi lá que soube que as irmãs e o sobrinho tinham morrido.
fotos arquivo nacional da torre do tombo, jornal “o século” (provas de corte)
Censura. Fotografias de “O Século Ilustrado” que a ditadura não deixou publicar. O “lápis azul” actuou desde o primeiro momento para evitar que a comoção geral se transformasse numa crítica ao regime
fotos arquivo nacional da torre do tombo, jornal “o século” (provas de corte)
Dias depois, um milagre aconteceu. Um jornal publicou a fotografia de um bebé que tinha sido resgatado pelos bombeiros na noite da tragédia e que, considerado órfão, tinha sido entregue à Misericórdia para adopção. A família de Guilhermina não queria acreditar no que via. Era o bebé que a mãe deixara cair à água, no meio da escuridão. Sem que até hoje ninguém consiga perceber como, o bebé deve ter caído sobre uma placa de lusalite ou outro pedaço de escombro das barracas e conseguiu sobreviver.
Acompanhados de vários vizinhos que serviram de testemunhas, os pais de Guilhermina foram à Misericórdia buscar o bebé. Mas não os queriam deixar levá-lo. Não porque duvidassem de que era deles, mas porque já havia casais “de doutores e engenheiros” dispostos a ficar com ele e a dar-lhe uma vida que a família, que já era pobre e ainda perdera tudo, nunca lhe poderia proporcionar.
A mãe de Guilhermina bateu o pé e conseguiu trazer o menino. Já tinha perdido duas filhas, não o perderia também a ele. Sem teto, roupas ou mobília, a família ficou a viver com vizinhos durante dois anos, enquanto aguardava que lhes fosse dada uma casa, no novo bairro da Urmeira, construído de raiz para os desalojados das cheias.
Mas nem o milagre os resgatou da escuridão daquela noite. A mãe continuou a “gritar de noite e de dia” pela morte das filhas. O pai, que já bebia, afogou-se cada vez mais no álcool. E o filho de Guilhermina nasceu em Abril com problemas neurológicos que os médicos atribuíram ao trauma vivido na gravidez, de que ela nunca recuperou.
Guilhermina dispôs-se a trabalhar de noite e de dia para sair do bairro. Não aguentava as recordações. A mudança, no entanto, não lhe aliviou a memória. Ainda hoje não dorme com a chuva e tem pavor da água. Na praia não se aproxima do mar e recusa-se a pôr os pés num barco. A tragédia vem-lhe constantemente à cabeça, como se nunca tivesse saído do cimo daquele telhado. “Eu também era para morrer naquele dia. Não teve de ser, mas é uma sobrevivência de luta”.
Não morreu nas cheias, mas naquela noite escura a vida deixou de ter luz.
*Com Joana Beleza e José Pedro Castanheira
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Fonte: Expresso

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