
'Há 14 anos que sonhava fazer esta viagem. O percurso há muito que estava decidido – o Cabo Norte. Havia dois pormenores que me excluíam: quem já tinha ido tinha uma moto turística e cerca de 5000€ para gastar. Eu não tenho uma moto turística e nunca iria gastar 5000€ apenas comigo deixando o resto da família em casa. O meu objectivo é mostrar que é possível fazer uma viagem de quase 12 000 km com uma moto não turística e sem termos de despender muito dinheiro.
No domingo dia 29 de Junho dirigi-me ao Cabo da Roca para fazer a minha partida simbólica. E na segunda-feira dirigi-me ao Luís Tuning (Vila Franca de Xira) para colocar pneus novos Continental Contiforce a um bom preço. O Luís disse-me que não conseguiria fazer a viagem toda com eles.
No primeiro dia, a 2 de Julho, a noite foi às voltas na cama. Amanheceu nublado com nuvens de chuva. Perdi imenso tempo na arrumação da bagagem. No final, olhei para o pneu seminovo da minha Hayabusa e pensei: Porque não o levas? Coloquei-o na balança, pesava cinco quilos. Ora o meu peso é de 75 quilos, se pesasse 80 quilos não podia deixar os cinco quilos em casa. Certo? Vais comigo!
Já perto de Burgos, fui forçado a encostar perto de placas de mudança de direcção, porque nessa altura o GPS ficou sem satélites. Não levou 15 segundos para que ouvisse uma sirene. Dois polícias. Expliquei-lhes o sucedido mas não se convenceram. Um deles foi ver a minha matrícula e disse-me: 'No puedes parar aqui! Dónde quieres ir?' 'Quero ir para Irún mas não quero pagar.' 'Ah! No quieres pagar, entonces seguirme!' Passados 20 km com eles sempre a fazerem-me sinal para me manter encostado à traseira das suas motos, comecei a pensar que me iam levar para esquadra. Mas, de repente, começam os dois a apontar-me a estrada e a dizer-me adeus.
O segundo dia foi complicado devido a um acidente perto de Irún com um TIR que havia capotado e ocupava quase toda a faixa de rodagem. A entrada em França foi feita debaixo de chuva e continuou assim até Limoges. As condições eram perigosas. Mas, após tomar a E9 para Paris, foi possível aumentar o ritmo de viagem.
No terceiro dia, por ter perdido muito tempo com a chuva na etapa do dia anterior, decidi sair mais cedo. Pensei em fazer a viagem através das vilas francesas. Ainda economizava nas portagens e via algo mais do que uma auto-estrada. Mas com o passar do tempo e com tão poucos quilómetros realizados, resolvi entrar na auto-estrada para Paris. Dei graças ao GPS…
Segui para a Bélgica onde numa estação de serviço conheci três motards na ‘casa’ dos 50 anos. Reparei que falavam e apontavam para mim. Por fim, perguntaram-me para onde ia: 'Cabo Norte' Um deles deu um salto como tivesse ganho algo. Este, ao ter reparado no pneu suplente, apostara: eu certamente iria para longe.
Na Bélgica, os termómetros acusavam 31,2º C. O calor convidava a andar de moto. Poucos quilómetros depois e já estava a entrar na Holanda. Mais difícil foi sair de lá por causa de acidentes, túneis e obras. Não podia passar dos 70 km/h. Por fim cheguei à Alemanha – o ‘falcão’ pôde esticar as asas. No camping onde iria passar a noite, pedi ao dono se me podia guardar o pneu até ao meu retorno. Se tivesse de fazer a substituição em França, esta seria cara.
No quarto dia de viagem, entrei nos países nórdicos. Um dia pouco produtivo devido às ligações de ferry.
Na ‘autobahn’ até Puttgarden apanhei um trânsito muito intenso. Chegado a Puttgarden procurei um hipermercado para me abastecer com o máximo de comida possível. Apanhei um ferry. Chegado à Dinamarca percorri pouco mais de 130 km até Helsingborg. Novo ferry – Helsingborg na Suécia. Estavam 30º C na Dinamarca. Com tanto calor era ver os dinamarqueses nas estações de serviço seminus.
Nesse dia aproveitei para fazer mais uns quilómetros em direcção a Estocolmo. Fechei a loja às 20h00 no primeiro dos excelentes e baratos Campings Suecos.
O quinto dia foi de extremos: o pior e o melhor. Amanheceu frio e com nuvens e o meu objectivo era conhecer Estocolmo. Mas agora fazia um frio intenso acompanhado por chuva torrencial. Tinha ainda cerca de 300 km pela frente até à cidade. Esses quilómetros viraram um martírio. As minhas luvas waterproof viraram 100% wet e deixei de ter sensibilidade nos dedos. Parei numa estação de serviço e bebi alguns três cafés.
Com o aproximar da cidade de Estocolmo tudo mudou. A chuva parou e o céu carregado de nuvens deu lugar a um bonito céu azul. Estocolmo é uma das cidades mais lindas da Europa.
No sexto dia, a 7 de Julho, fiz-me à estrada numa manhã fria mas de céu azul. Sentia-me abençoado. Se pudesse parava de cinco em cinco quilómetros para um kodak moment, mas não podia ser. Rolei com três alemães, mas a fome apertou e parei para almoçar. Fiz-me à estrada e 40 km mais à frente a moto de um dos alemães estava no chão destruída.
Cheguei à fronteira da Finlândia em Tornio. A maioria dos motards continua pela Suécia. Eu não os censuro, viajar pela Lapónia é bem mais lento. As estradas estão repletas de radares.
No penúltimo dia acordei com a temperatura dentro da tenda baixa. Assim que abri o zipper da tenda o ar gélido na face fez-me temer pelos 800 km até Nordkapp.
Fiz-me à estrada em direcção a Inari. Chovia e um termómetro indicava +5º C, ou seja, estava a viajar com uma temperatura perto dos 0ºC (deslocação do ar). Não conseguia fazer mais de 100 km de cada vez, sem ter de parar numa bomba de gasolina para beber bebidas quentes. Decidi usar tudo o que tinha nas minhas malas para me proteger do frio, até roupa suja. Mas a partir de Inari tudo mudou. A chuva deu lugar ao sol. A Lapónia é mágica! Muitas renas, animais de 70 quilos. Uma delas pôs-se ao meu lado (até lhe via o branco dos olhos) se eu acelerava ela acelerava, se travava ela travava. Hayabusa Vs Rena da Lapónia. E os Alces ?! Bichos com três metros com mais de 600 kg. A barriga deles fica à altura do nosso capacete.
A chegada a Karigasniemi e a consequente entrada na Noruega é feita numa estrada secundária. Preparava--me para os últimos 100 km mas o tempo havia piorado novamente. Fiquei no Camping Nordkapp.
No último dia, a 9 de Julho, acordei tarde. Estava a 24 km do destino e do local onde iria tirar as fotos para a posterioridade. Os últimos quilómetros foram feitos com um tempo horrível. Neve por todo o lado e renas. Estava a enfrentar... o pico do Verão. Por entre a névoa vejo uma placa: Nordkapp. Mas o ponto mais importante de toda a viagem ficava a cerca de 200 mt. Era engraçado o aspecto de todos aqueles que haviam ali chegado de duas rodas. A nossa aparência espelhava as marcas de muitos quilómetros. Sorriamos uns para os outros, sem dizermos uma palavra. O acesso ao globo estava congestionado. Turistas. Havia muitas pessoas que levavam bandeiras. Finalmente havia chegado a minha vez. Tirei as luvas para tocar aquele globo de ferro.'
Aqueles que planeiam ir ao Cabo Norte não vão limitados em termos de dias, para prevenir eventuais peripécias. Uns dos principais factores que condicionam o número de km a fazer são as condições atmosféricas. Deverá haver uma disciplina de horários rígida. Levantava-me todos os dias às 06h30 e normalmente acabava o dia às 20h00. Mesmo assim, por vezes tinha de continuar a conduzir depois das 20h00. Contem sempre com chuva e frio a partir da Suécia. Se optarem pelo campismo como eu fiz, levem material de excelente qualidade e não encarem a ida ao Cabo Norte como uma viagem de turismo mas como uma prova de resistência física e mental.
Mais sobre a minha viagem em www.freewebs.com/americosantos
Américo Santos* * * * * * * * * * * * * * * * * *
Fonte: Correio da Manhã
Sem comentários:
Enviar um comentário