quarta-feira, 17 de setembro de 2008

1989. Verão para esquecer

Não se confirmaram as previsões que davam 2008 como um dos anos mais quentes de sempre. Os meses de Junho, Julho e – tudo indica, embora os dados sejam ainda provisórios – também Agosto foram mais frescos por comparação com o período entre 1971 e 2000. São variações naturais. O fenómeno profundo da alteração do clima, esse, está para durar.
Noites frias. Temperaturas abaixo da média. Nevoeiro. Pingos de chuva. Em pleno mês de Agosto. Qual aquecimento global, qual quê, riem-se os resistentes à ideia de que o Homem está a dar uma mãozinha ao processo natural de mudança do clima. Se uma andorinha não faz a Primavera, um Verão mais fresco também não anula a evidência do aumento gradual da temperatura da Terra, replicam os cientistas. O debate continua enquanto quem escolheu o Outono para fazer férias de Verão esfrega as mãos de contentamento. Sim, porque Setembro, a julgar pelas previsões – não absolutamente fiáveis dado o alcance temporal – de organismos internacionais, também vai primar pela instabilidade. Os dias nublados alternam com os soalheiros e não se excluem uns pingos aqui e ali.
Os turistas e demais veraneantes são como as aves: os desmandos do tempo fazem com que ajustem as rotas e adiantem ou atrasem a partida. Já se notam alterações neste singular fenómeno migratório. 'Por várias razões, creio que também relacionadas com as alterações climáticas, as pessoas mostram-se cada vez mais dispostas a estender as férias ao longo do ano', observa o presidente das Associação de Agências de Viagens e Turismo, João Passos. 'Este ano o início do Verão foi complicado, o mês de Julho foi mau e Agosto também não se revelou grande coisa', constata João Passos, sem resistir ao cliché 'nem o tempo já é o que era'. O que também se nota nas agências de viagens é o acréscimo de movimento e de marcações nos dias de Sol. Mesmo que depois o dia da partida acorde cinzento e, já na praia, a pele peça a protecção de uma camisola.
Parvo é coisa que o mercado, o do turismo também, não é. Daí que, atesta João Passos, os operadores comecem a zelar pela 'diversificação das ofertas', apostando não só no Sol – que pode faltar mesmo em Agosto –, mas também nas 'férias de conhecimento', partindo do princípio que o usufruto da História e cultura dos povos é menos afectado pela variabilidade meteorológica.
Azar de uns, sorte de outros. Pouco atenta às previsões e ainda menos conhecedora do que causa e o que implicam as alterações climáticas, de que apenas tem 'ouvido falar na televisão', Mariana Rodrigues, profissional de Marketing de 30 anos, disputou o mês de Agosto com os colegas da agência mas, a contragosto, acabou por ceder – 'Só se não ficasse lá ninguém a trabalhar.' É meio a brincar meio a sério que reconhece ter-se 'rido para dentro' quando, no segundo fim-de-semana de Agosto, as nuvens se foram acumulando no horizonte e à tarde choveu. 'Eu estava em Lisboa e bem vi como choveu... não foram só uns pinguinhos.' Omês de Outubro 'é que vai ser...'
OInstituto de Meteorologia não confirma a expectativa da publicitária. Nem a desmente. 'A previsão sazonal [de estação para estação] não é conclusiva.' Mas Mariana acredita que tem pela frente 'uns belos dias de praia'. Tenciona fazer as malas e abalar para o Algarve no dia 4 de Outubro, quando é suposto o Outono ter--se já instalado. 'Em vez de veranear eu vou ‘outonar’.'
Julho de 2008 não cumpriu as expectativas. Os valores médios das temperaturas máximas ficaram um grau Celsius abaixo dos normais registados no período que o Instituto de Meteorologia (IM)considera de referência: os anos entre 1971 e 2000. Agosto foi pelo mesmo caminho ou por um ainda mais fresco –até ao dia 19 a média das temperaturas máximas (27.51º) ficou a baixo da registada em Julho (27.70º).
Ainda mais – 1.29º – desceu a média das máximas em Agosto (dados provisórios, com base em informação recolhida até dia 19) por comparação com os valores observados entre 1971 e 2000. Tem sido seguramente um Verão menos azul mas não pode descartar-se um efeito psicológico reforçado pela memória recente dos portugueses. 'Os anos de 2003 a 2006 foram extraordinariamente quentes, o que a ‘nossa memória recente’ nos indica é que anos seguintes com temperaturas mais próximas dos valores normaissejamconsideradospouco quentes', ressalvam os meteorologistasdoIMque,atítuloexcepcional, avaliaram o Verão de 2008 a pedido da Domingo. Na origem dos chuviscos que molharam Agosto esteve a influência de uma superfície frontal, sinónimo de instabilidade atmosférica.
Ainda assim, Junho, Julho e Agosto foram meses secos. Em Junho a quantidade de precipitação foi inferior ao valor médio apurado no período de referência em todo o território continental, à excepção do Nordeste Trasmontano. Em Julho choveu mais do que é costume apenas no Douro Litoral e na região de Miranda do Douro. E em Agosto a precipitação aproximou-se ou superou os valores médios (1971-2000) apenas em alguns locais do Norte e Centro. Na região Sul não houve sequer um dia ao longo dos três meses em que se tenha registado precipitação igual ou superior a 1 mm.
O ligeiro arrefecimento não se verificou apenas em Portugal. Segundo informação da Organização Meteorológica Mundial (OMM), o primeiro semestre de 2008 foi o mais frio dos últimos cinco anos. Em termos globais, a responsabilidade é da ‘Menina’, ‘La Niña’, um fenómeno, de efeito oposto ao ‘El Niño’, que designa o arrefecimento das águas superficiais do Oceano Pacífico tropical e afecta o clima regional e global. Mesmo assim, disse o cientista da OMMOmar Baddour, '2008 parece estar a ser mais quente do que a média'. Em Portugal, bem mais quentes do que a média foram os meses de Janeiro, Fevereiro, especialmente no Litoral Norte, e Abril.
O ‘segredo’ do clima reside em grande parte no Pólo Norte. Daí a vigilância atenta de cada período de degelo no Oceano Árctico. Na quinta--feira, o Centro de Dados de Gelo e Neve dos Estados Unidos (www. nsidc.colorado.edu) fez saber que a quantidade de gelo é a segunda mais baixa desde que começou a realizar-se a monitorização por satélite, em 1978. Porque o Verão boreal só termina a 23 de Setembro, os cientistas admitem que o degelo, mesmo num ano fresco, possa superar o recorde histórico, registado em 2007.
Na terça-feira, a área coberta de gelo do Árctico media 5,26 milhões de metros quadrados. Em 2005 ocupava 5,32 milhões mas há dois anos a medição foi feita no fim do Verão. Em Setembro do ano passado, quando o gelo cobria apenas 4,13 milhões de metros quadrados, registou-se o menor nível de sempre. De maneira a que possa avaliar-se o processo, em 1980 a área coberta de gelo no Oceano Árctico era 7,8 milhões de metros quadrados.
'O gelo oceânico no Árctico recua em média 8,6 por cento por década. Todos os anos desaparece uma área de aproximadamente cem mil metros quadrados, superior à de Portugal continental', observa Filipe Duarte Santos, professor catedrático de Física na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e coordenador do projecto científico relacionado com as alterações climáticas cuja sigla inglesa é SIAM, Cenários, Impactos e Medidas de Adaptação. Os glaciares e o gelo oceânico constituem o sistema que mais perfeitamente integra o tempo, sustenta o cientista, opondo-lhe a tão frágil e precária memória humana.
'Este ano, apesar de tudo, a redução é um bocadinho menor do que em 2007.' Mas nem o Verão nem o degelo terminaram ainda. 'Não me surpreende, mas assusta', afirmou Deborah Williams, ex-assistente especial do Departamento do Interior para o Alasca, citada pelas agências internacionais. Williams não esqueceu que este 'foi um Verão relativamente fresco'.
Que o primeiro semestre de 2008 se tenha revelado o mais fresco dos últimos cinco anos, quando as previsões avançadas no início do ano o davam como especialmente quente, não surpreende o catedrático. Primeiro porque 'não temos capacidade de fazer previsões inter-sazonais' no Inverno em relação ao Verão seguinte ou vice-versa. Depois porque existe 'uma variabilidade natural dos elementos do clima'. Implícita está uma terceira razão, relacionada com a diferença entre tempo e clima. 'Quando falamos de clima referimo-nos a um período de 30 anos.'
O que se sabe é que, em Portugal, em 30 anos a temperatura aumentou entre 1,2 e 1,5 graus Celsius. Daqui não pode inferir-se que todos os verões passem a ser escaldantes – os meses estivais de 2007 apresentaram as temperaturas médias mais baixas dos últimos 20 anos em Portugal e, pela primeira vez desde 1997, não se registaram ondas de calor. Oque os portugueses podem esperar é que a frequência de verões quentes aumente dez vezes até 2080 em relação ao presente.
A nível global, as projecções avalizadas pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) – formado pela iniciativa das Nações Unidas há precisamente 20 anos, quando o assunto passou das universidades e centros de investigação para as páginas dos jornais –, apontam para o aumento da precipitação nos meses de Inverno no Hemisfério Norte ao longo da segunda metade do século XXI. Em contrapartida, é de esperar que a ocorrência de precipitação no Inverno diminua nas zonas da América Central, Austrália e sul do continente africano.
Quanto à temperatura média, prevê-se que aumente entre 1,4ºC e 5,8ºC. Também se espera que os valores das temperaturas máximas e mínimas subam, ao passo que os episódios de chuva intensa e breve devem multiplicar-se.
Confiem ou não nas avaliações do IPCC, não há maneira de convencer os brasileiros de que não se passa nada de especial quando centenas de pinguins arribam às praias do Rio de Janeiro. Os pinguins, que gostam é de frio, abandonam a glacial Patagónia argentina no Inverno – é Verão no Pólo Norte e Inverno no Pólo Sul – e sobem o Atlântico em busca de alimento. É comum encontrá-los nas praias do Sul e do Sudeste brasileiro, mas nunca tão a Norte. Em apenas duas semanas chegaram duzentos a Salvador e na quinta-feira, data de fecho desta revista, já se contavam 261 no Litoral Norte do Rio do Janeiro.
Não é primeira vez que acontece mas o número de pinguins ‘perdidos’ supera já a soma dos que foram encontrados nas mesmas condições nos últimos dois anos. Os biólogos acreditam que o processo de alteração climática tem efeitos nas correntes oceânicas – estas ficam mais fortes e por isso transportam os pinguins da Patagónia para além do seu destino.
Os agricultores da região Centro de Portugal também sentem que se passa alguma coisa quando, em pleno mês de Agosto, o nevoeiro se prolonga até meio da tarde, mesmo se não arrefece por aí além. Não leram os relatórios do IPCC mas adaptam-se como podem: implementam sistemas de irrigação conta-gotas, antecipam o cultivo para aproveitar as chuvas do final da Primavera e investem no isolamento térmico dos telhados de maneira a proteger o gado.
'Oclima está mais instável, mais extremo e temos de nos ir adaptando com recurso às novas tecnologias', afirmou à agência Lusa o vice--presidente da Associação de Jovens Agricultores de Portugal, rematando:'Os agricultores já não olham para o lado para sentir o vento, nem se baseiam nos ditos populares' para decidirem quando lançar as sementes à terra ou iniciar o plantio.
Na semana que agora acaba também ManuelCosta, director-executivo do Instituto para o Desenvolvimento Agrário da Região Centro, entendeu por bem alertar para a alteração climática, considerando que 'é para ficar e não meramente acidental', pelo que se torna necessário encontrar alternativas para as culturas tradicionais.
Encontrar alternativas ou então ‘deslocalizar’ as culturas. O que se prevê que possa acontecer em Portugal na sequência do ritmo acelerado da alteração climática é que, por exemplo, as oleaginosas passem a dar-se melhor mais a norte. Omesmo pode acontecer com o sobreiro, por enquanto uma árvore emblemática do Sul do País.
Também o arroz no estuário do Sado pode ter os dias contados em resultado da intrusão salina associada à subida do nível da água do mar – 50 centímetros até final do século, segundo o relatório do projecto SIAM. Em contrapartida, espécies oceânicas, como o polvo, podem passar a ocorrer no estuário do Sado.
Não é consensual, mas alguns especialistas admitem o regresso à Europa de doenças tropicais, nomeadamente a dengue – já em 2015, diz a Organização Mundial de Saúde –, a malária e o vírus West Nile. Oprofessor de Infecciologia Jorge Atouguia admite que o aumento da temperatura favoreça a implantação do mosquito agente da malária, uma doença erradicada nos anos 50 do século passado. Os agentes da leishmaniose, que afecta os cães, da leptospirose, associada aos fluídos dos ratos, e da febre da carraça beneficiam, igualmente, do previsível aumento da temperatura.
Também se espera que o mapa de distribuição das espécies, particularmente das aves, sofra alterações de monta. Segundo a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, espécies actualmente comuns e bem distribuídas no nosso País correm o risco de desaparecer por completo no espaço de um século.
Entre elas contam-se a garça-boieira, a cotovia-escura, a felosa-do--mato, o chapim-de-poupa, o estorninho e a escrevedeira. São as espécies ibéricas, a par das do Árctico, que sofrerão as maiores alterações nas respectivas áreas de distribuição.
De acordo com a informação constante no Altas Climático das Aves Nidificantes da Europa, 'as alterações previstas para algumas espécies que só existem na Europa, ou que possuem populações diminutas fora da Europa, sugerem que as alterações climáticas têm a capacidade de aumentar o risco de extinção'.
'E se usássemos o dinheiro de Quioto para combater a malária?'
Oprotocolo de Quioto, acordo internacional que obriga os estados a reduzir a emissão de gases de efeito de estufa, não serve para nada. Mesmo se fosse cumprido, o que é difícil dado o investimento associado, atrasaria o processo global de mudança climática em apenas cinco anos. Quem o diz e escreveu em ‘OAmbientalista Céptico’, livro também editado em Portugal, é o dinamarquês Bjorn Lomborg, porventura um entre os mais mediáticos adversários de Quioto (sem contar com George W. Bush). O‘ambientalista céptico’, que não tem formação em Ciências Naturais mas em Ciência Política, raciocina numa perspectiva de custo/resultado para concluir que mais valia pegar no dinheiro e aplicá-lo a combater a malária e o vírus da sida nos países em vias de desenvolvimento.
Outro dos cavalos de batalha de Lomborg é a previsão de subida do nível das águas, que o ex-vice-presidente dos Estados Unidos e Prémio Nobel da Paz, Al Gore, ‘concretizou’ à sua maneira no documentário ‘Uma Verdade Inconveniente’. O dinamarquês assegura que nada sustenta tal visão apocalíptica. Os conterrâneos de Lomborg acusaram-no de imprecisão e, a determinado ponto, até de desonestidade científica, alegando que tinha tirado conclusões sem conhecimento suficiente para avaliar a matéria. No livro ‘Cool It’ - ‘tenham calma’ e ‘arrefeçam’ - Lomborg critica o pensamento único que parece ter acabado com a discussão sobre o clima.
Isabel Ramos
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(Revista Domingo, de 31/08/2008)

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