Memória meteorológica é algo que
ninguém tem. Bastam dois ou três dias de chuva ou de temperaturas que não sejam
tórridas em Julho ou Agosto, para que se conclua que nunca se viu um Verão
assim. Na história dos verões em Portugal, porém, já houve de tudo, segundo
dados detalhados disponibilizados pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera
(IPMA) ao PÚBLICO. Se os portugueses acham que o Verão de agora está a ser
fraco, é porque já não se recordam do de 1977 – o mais frio dos últimos 80
anos. E se acreditam que os verões excepcionalmente quentes são um fenómeno
exclusivo das últimas duas décadas, é porque desconhecem que em 1949 o país e a
Europa suportaram sufocantes ondas de calor no Verão.
De acordo com os dados do IPMA,
há uma evidência incontornável: as temperaturas médias em Junho, Julho e Agosto
subiram acentuadamente desde a década de 1970. Dos dez verões mais quentes
desde 1931, nove ocorreram a partir de 1989, com cinco deles a partir de 2000. No
outro extremo da escala estão os anos 1970. Os três verões mais frios foram os
de 1977, 1971 e 1972. E 1978 fica em oitavo lugar. Até o “Verão quente” de 1975
teve mais calor na política do que na meteorologia: as temperaturas estiveram,
em média, abaixo do normal.
Anos mais frios – A década de
1970, na verdade, encerra um período em que o planeta arrefeceu, depois de ter
aquecido no princípio do século XX. Uma das teorias para esse período mais frio
está no aumento da concentração de aerossóis na atmosfera, devido ao
agravamento da poluição industrial no pós-guerra. “Os modelos [de simulação do
clima] não conseguem reproduzir a descida após 1940 sem os aerossóis”, afirma
Pedro Viterbo, director do Departamento de Meteorologia e Geofísica do
Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).
Em Portugal, o clima seguiu o
mesmo padrão. No Verão, entre 1941 e 1975, a média da temperatura máxima desceu
0,26 graus por década. Já entre 1976 e 2006, aumentou 0,74 graus por década,
segundo um estudo da climatologista Fátima Espírito Santo, da Divisão de Clima
e Alterações Climáticas do IPMA, juntamente com outros investigadores. Nesta
escalada mais recente, Portugal viveu dois momentos extraordinários. O primeiro
foi a terrível onda de calor entre o final de Julho e meados de Agosto de 2003.
Fala-se de uma onda de calor quando a temperatura permanece mais de cinco graus
acima da média, durante mais de seis dias. Em 2003, no interior do país, a onda
chegou a durar 17 dias. No dia 1 de Agosto, na Amareleja, Alentejo, os
termómetros atingiram a marca histórica de 47,4ºC. E em Portalegre, a madrugada
desse mesmo dia foi como se o sol estivesse a pino: 30,7ºC de temperatura
mínima.
A floresta ardeu como palha, em
incêndios gigantescos que somaram a inigualável marca de 425.839 hectares de
área queimada. Em duas semanas, o calor causou quase dois mil óbitos a mais do
que seria de se esperar naquele período. Apesar das suas consequências, o Verão
de 2003 não foi o mais quente em Portugal, mas sim o quinto – a seguir a 2005,
2004, 1949 e 2010. “Pode não ter sido o Verão com maior temperatura média. Mas
foi o que teve a maior e mais intensa onda de calor”, explica Fátima Espírito
Santo.
O mais quente foi o de 2005, em
que a média temperatura máxima ao longo dos três meses foi de 30,5ºC.
Curiosamente, 2005 teve um Inverno rigoroso, com duas ondas de frio em Janeiro
e Fevereiro e com as mínimas a descerem aos 12ºC negativos nas Penhas Douradas
no princípio de Março. O Verão trouxe o oposto, com duas ondas de calor logo em
Junho e um Agosto incandescente. Mesmo depois de tudo o que ardera em 2003, os
fogos consumiram mais 339 mil hectares de florestas e matos. Parece que foi
ontem, mas já se passou uma década desde aquela razia nas florestas. “Estes
sítios já estão disponíveis para o fogo e eu diria em grande vulnerabilidade.
Há muito combustível acumulado”, alerta o investigador José Miguel Cardoso
Pereira, do Instituto Superior de Agronomia.
No passado, houve verões tão
quentes como os de agora – 1943 e 1949, por exemplo. Os efeitos sobre os fogos
e a mortalidade eram outros. Havia menos combustível para arder e morria-se
mais nos meses quentes de qualquer maneira, devido a infecções causadas por
microorganismos. Seja como for, os serviços meteorológicos do país não estavam
orientados para lidar com fenómenos extremos. “Só em 1998, após a tempestade de
5 de Novembro de 1997 [que matou 11 pessoas no Alentejo] é que o instituto
entrou operacionalmente na protecção civil”, recorda Manuel Costa Alves,
ex-director do Instituto de Meteorologia e Geofísica – hoje o IPMA. “Não havia
briefings, não havia nada, apenas comunicados de rotina. As ondas de calor era
como se não existissem”, acrescenta. Mas existiam e matavam. Entre 12 e 20 de
Junho de 1981 houve 1906 óbitos adicionais em relação ao normal. Em 1991, foram
1002 mortes. Só depois de 2003 é que surgiram os planos de contingência para o
calor. Mas ainda assim morreram mais 1123 pessoas em 2006, 637 em 2010 e 1684
no ano passado, segundo dados do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.
Choveu como se fosse Inverno – Na
história dos verões em Portugal, 1988 surge como o mais húmido. Nunca choveu
tanto em Junho como naquele ano. Foram 118 milímetros – um valor típico para um
mês de Dezembro, no auge do Inverno. O Verão encerrou com 164 milímetros de
precipitação, cerca de um quinto da chuva que cai num ano médio em Portugal. O
mais seco foi o de 1996. Em três meses, caíram apenas 15 milímetros de
precipitação – um valor que facilmente se atinge numa hora de chuva muito
forte.
O sobe e desce dos verões mostram
a grande variabilidade que pode haver no clima entre um ano e outro. Mesmo que
haja uma tendência de crescimento desde meados dos anos 1970, “isto não quer
dizer que todos os valores subam linearmente”, explica o climatologista Pedro
Miranda, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Os últimos anos
têm sido um retrato disso. Depois de quatro verões escaldantes, entre 2003 e
2006, os dois seguintes foram ligeiramente mais frios do que média. Seguiram-se
2009 e 2010, quentes, depois dois verões próximos da média e 2013 novamente
acima do normal.
O ano de 2014, para já, parece
estar a jogar na equipa dos verões frios. Junho foi um mês regular, com uma
temperatura média apenas 0,06ºC superior ao normal. Mas em Julho, pelo menos
até dia 23, as temperaturas médias têm estado substancialmente abaixo do
normal, com desvios de 1,37ºC em Lisboa, 1,79ºC em Castelo Branco e 1,94ºC em
Montalegre. Em 1977, no Verão mais frio desde 1931, os termómetros estiveram
2,6ºC abaixo do normal. Para o futuro, os especialistas não têm dúvidas quanto
aos verões em Portugal. “Vão ser claramente mais quentes. Não há nenhum modelo
climático que não aponte um aquecimento”, afirma Pedro Miranda. Segundo o
último relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, a
temperatura média no Verão na Península Ibérica pode aumentar entre até 1,5ºC
em 2100, no cenário mais favorável, ou até 7ºC no pior cenário.
Ao calor pode juntar-se o
espectro das secas. “Nas nossas simulações apanhamos pelo menos um episódio com
dez anos de precipitação abaixo da média”, afirma Pedro Viterbo, do IPMA. “Não
há mecanismo de resiliência que permita resistir a isso. Seria preciso ter
barragens três vezes maiores”, ironiza.
Ricardo Garcia
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Fonte: PÚBLICO
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