Em entrevista ao
Expresso a propósito do Dia Meteorológico Mundial, que se comemora hoje,
quarta-feira, João Corte-Real tece fortes críticas ao facto de a Meteorologia
se ter transformado “no parente pobre do Instituto Português do Mar e da
Atmosfera” (IPMA).
Professor
catedrático das universidades de Évora e Lusófona (Lisboa), o académico é
também colaborador do Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais
Mediterrânicas (Universidade de Évora) e director do Departamento de Aeronáutica
e Transportes da Universidade Lusófona, onde coordena o Centro de Investigação
DREAMS.
Para que
serve o Dia Meteorológico Mundial?
O dia 23 de Março
é a data da fundação da Organização Meteorológica Mundial (23 de Março de
1950), uma agência especializada da ONU. Neste dia, o secretário-geral do ONU
propõe sempre um tema científico para todo o ano. O tema deste ano é “Mais
quente, mais seco, mais húmido. Enfrentar o futuro”. A 14 de Outubro de 1980, 30
anos depois, foi criado o Dia do Meteorologista e nesta data foi promulgada a
lei que regula esta profissão em vários países do mundo, mas isso ainda hoje
não acontece em Portugal. Há uma profissão de meteorologista reconhecida em
diversos países e se um meteorologista não estiver legalmente creditado, não
pode exercer a profissão. Era bom que em Portugal houvesse a profissão
reconhecida e as pessoas que a exercem terem de estar registadas como tal.
O tema
escolhido pelo secretário-geral da ONU para este ano é importante?
Sim, porque se o clima estiver a mudar, e muito provavelmente estará, pode haver regiões do mundo onde a temperatura seja superior àquela que foi no passado, em média, e regiões que hoje estão mais secas ou mais húmidas. Por isso têm de se tomar medidas de adaptação a essas novas situações e há que enfrentar o futuro.
Sim, porque se o clima estiver a mudar, e muito provavelmente estará, pode haver regiões do mundo onde a temperatura seja superior àquela que foi no passado, em média, e regiões que hoje estão mais secas ou mais húmidas. Por isso têm de se tomar medidas de adaptação a essas novas situações e há que enfrentar o futuro.
É por
isso que tivemos ontem, terça-feira, uma forte e inesperada queda de granizo
sobre Lisboa?
Não foi nada de
anormal para a época, embora tenha sido inesperado. Houve uma Linha de
Instabilidade sobre a Península Ibérica visível nas cartas de análise e
previsão do tempo para a Europa feitas com base nas observações de satélite,
radar, instrumentação de superfície e de altitude (balões meteorológicos). Esta
Linha de Instabilidade é uma linha ao longo da qual se desenvolvem nuvens
cumuliformes (de desenvolvimento vertical), às quais estão associadas
precipitação forte, ventos intensos, descargas eléctricas (relâmpagos) e
trovoadas. Se a temperatura de zero graus (a chamada isotérmica zero) na
atmosfera está a um nível muito baixo, os cristais de gelo formados dentro
dessas nuvens, devido ao arrefecimento que pode ser provocado por correntes
ascendentes de ar húmido, não derretem e atingem o solo como granizo.
Está
preocupado com a situação da Meteorologia em Portugal. Porquê?
Não se pode
falar desta situação sem falar da fusão de três instituições — Instituto de
Meteorologia (IM), IPIMAR e secção de geologia marinha do Laboratório Nacional
de Engenharia e Geologia (LNEG) — que deu origem ao Instituto Português do Mar
e da Atmosfera (IPMA) a 20 de Março de 2012. Acho que a situação de
Meteorologia em Portugal deve ser alterada e o problema não vem de agora mas de
há bastante tempo. Quando existia o Instituto Nacional de Meteorologia e
Geofísica (INMG), a tutela era o Ministério das Obras Públicas e Transportes.
Em 1990 deu-se uma situação que considero um erro crasso, que foi a mudança de
tutela do INMG para o Ministério do Ambiente. Por causa dessa mudança eu deixei
de ser subdirector do instituto.
Mas
porque foi um erro crasso?
Porque nessa
mudança de tutela deixou de ter financiamento contínuo elevado. A razão da
mudança foi política, baseada na ideia de que a meteorologia e a geofísica
devem ser integradas nas questões ambientais. Passados alguns anos o INMG
transformou-se no Instituto de Meteorologia (IM) e depois no IPMA em 2012, mas
nesta última mudança a Meteorologia perdeu autonomia e tornou-se uma espécie de
parente pobre no IPMA. A fusão que deu origem a este instituto integrou
organismos que tinham muito mais peso do que o IM. Por outro lado, o IPIMAR
tratava da biologia marinha, área que não tem a ver directamente com a
Meteorologia ou com o clima.
Não é
esse o modelo do NOAA, a famosa Administração Nacional dos Oceanos e da
Atmosfera dos EUA?
Não, de maneira
nenhuma. Se a Meteorologia em Portugal estivesse ligada a uma instituição que
tratasse dos oceanos na perspectiva da circulação oceânica, da sua interacção
com a atmosfera, etc., faria sentido. Mas no IPMA trata-se só da biologia
marinha. E enquanto a área da Meteorologia tem hoje uma dezena de
investigadores, a área que pertencia ao IPIMAR tem seis ou sete vezes mais, ou
seja, há um grande desequilíbrio. No fundo, não posso aceitar que a fusão que
deu origem ao IPMA seja feita à custa da Meteorologia e sem qualquer afinidade
técnico-científica.
Isso
significa que os objectivos iniciais da criação do IPMA de aumentar a
integração das áreas da atmosfera e do oceano, incluindo a análise da
perigosidade sísmica, cujas fontes são maioritariamente localizadas no subsolo
marinho, não foram alcançados?
São objectivos
teóricos que não foram obviamente alcançados. Uma instituição deve operar
obedecendo a uma lógica, porque se não vai funcionar mal. E é o que está a
acontecer há bastante tempo no IPMA, não é só depois de fusão que lhe deu
origem em 2012.
O que
deve ter um instituto de Meteorologia para funcionar bem?
Deve ter quatro
níveis de operação, cada um dos quais dependendo do bom funcionamento dos
anteriores. O nível básico é a rede de observações, que exige equipamentos, a
sua manutenção e a calibração de instrumentos. O segundo nível que é a análise
e a previsão do tempo em várias escalas, com base em modelos numéricos avançados.
Claro que a análise e a previsão só são válidas se houver boa observação (o
nível anterior). O terceiro nível é a existência de serviços de informação
meteorológica e climática. E finalmente o nível de investigação, designadamente
investigação aplicada. Sem estes quatro níveis não haverá Meteorologia nem
Climatologia em Portugal.
Todos estes aspectos caracterizam um instituto independente, autónomo, que presta um serviço operacional de base de qualidade ao país. E têm de apoiar-se em tecnologias avançadas de comunicações e cálculo, em laboratórios onde se proceda à calibração e manutenção de instrumentos — neste momento não há nenhum no IPMA — e na formação de técnicos superiores que garantam a integração num corpo profissional.
Todos estes aspectos caracterizam um instituto independente, autónomo, que presta um serviço operacional de base de qualidade ao país. E têm de apoiar-se em tecnologias avançadas de comunicações e cálculo, em laboratórios onde se proceda à calibração e manutenção de instrumentos — neste momento não há nenhum no IPMA — e na formação de técnicos superiores que garantam a integração num corpo profissional.
Esta formação
é feita no nosso país?
Não, porque já
não há estágios profissionalizantes. A admissão de pessoal técnico superior já
nem sequer exige que sejam pessoas que vêm das universidades com formação em
Meteorologia. E isso nota-se. Quando oiço certos técnicos superiores falarem na
televisão sobre o tempo que vai fazer, noto perfeitamente que não são
meteorologistas, estão apenas a repetir frases feitas e, muitas vezes, até a
linguagem que utilizam não é uma linguagem de um meteorologista profissional. O
que era bom e persistiu durante muito anos em Portugal desapareceu. A ausência
de formação existe também nos próprios membros do Governo que tutelam o IPMA.
Basta ver que em muitos documentos oficiais aparece a palavra “metereologia”,
que não existe.
Os quatro
níveis que referiu existem em Portugal?
Existem, cada um
deles funciona mais ou menos, mas de forma nenhuma há esta interdependência que
tem de existir entre todos os níveis para que o IPMA funcione bem. Com a
criação deste instituto em 2012 a situação piorou em relação ao passado, houve
uma fusão de organismos sem harmonia, que tornou a Meteorologia o parente pobre
do IPMA.
É
verdade que nos países desenvolvidos não há nenhum instituto público em que a
Meteorologia não seja autónoma?
Que eu saiba,
não. Todos estes países têm institutos autónomos, independentes, com os quatro
níveis de que falei interligados e que fornecem um serviço de qualidade ao seu
país e à comunidade em que se inserem.
O que
significa que devido a estas deficiências na Meteorologia feita em Portugal, a
contribuição do IPMA para o desenvolvimento do país está muito limitada?
Sim. É uma pena
o instituto não funcionar como deveria, com o grau de desenvolvimento adequado
dos quatro níveis que referi há pouco. O que se tem passado desde há muitos
anos é que a Meteorologia tem sido sede de iniciativas que traduzem ambições
pessoais, políticas ou de conveniência, e que assentam sobre a areia. É o caso
da passagem da tutela do Ministério das Obras Públicas e Transportes para o
Ministério do Ambiente em 1990. Ainda por cima, em Portugal o ambiente e o
clima estão fora da Meteorologia, não assentam num instituto de Meteorologia
bem estruturado e constituem fundamentalmente temas políticos e não científicos.
Virgílio Azevedo e Tiago Miranda
23 de Março de
2016
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Texto e fotografia: Expresso
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