"A situação está muito complicada amanhã”. São 10h25 de quarta-feira e para Nuno
Moreira isso é uma novidade. O chefe da divisão de Previsão Meteorológica,
Vigilância e Serviços Espaciais do Instituto Português do Mar e da Atmosfera
(IPMA) acaba de entrar na sala e é rapidamente informado sobre o tempo que vai
estar esta quinta-feira. As notícias parecem não ser animadoras para o público,
mas deixam os meteorologistas entusiasmados.
Portugal vai ser atravessado por um sistema frontal
que trará chuva forte até meio da tarde. Segue-se um período de aguaceiros e,
mais para o fim do dia, outro sistema frontal atinge o território nacional. Ou
seja, mais chuvas fortes.
É isto. E é isto mesmo que, quinze minutos depois, a
meteorologista Sandra Correia vai dizer na videoconferência diária que os
especialistas do IPMA têm com alguns elementos da Protecção Civil. Nuno Moreira
precisa: entre quinta e sábado, no Minho e Douro Litoral, esperam-se 150
milímetros de chuva, um valor relativamente elevado que poderá motivar medidas
preventivas da Protecção Civil. Mas isso é lá com eles. No IPMA, a acção
escolhida foi para já a emissão de avisos amarelos, que podem tornar-se laranja
mais tarde, caso a situação o justifique.
Eram 6h50 quando Paula Leitão notou a chegada do
segundo sistema frontal. Olhando para os vários ecrãs de computador espalhados
pela secretária, um leigo não veria mais do que um mapa da Península Ibérica
coberto de manchas amarelas, laranjas e verdes que se deslocavam de norte para
sul. Mas a meteorologista, já com quase onze horas de trabalho às costas,
identificou nessas manchas um foco de atenção que até aí não existia. “Como é
que eu escrevo isto?”, pergunta, de olhos postos no computador onde tem escritas
as previsões do tempo para o dia. “Temos chuva, depois passa a aguaceiros e
volta a chuva forte…”
De Deus e da matemática – Para quem está habituado a
números, símbolos e mapas, lidar com as palavras pode ser difícil, sobretudo
quando não se deve entrar em detalhes excessivos, sob o risco de os textos se
tornarem incompreensíveis. “Às vezes percebemos o que vai acontecer, mas não
conseguimos explicar. Só com um boneco e uma palestra de dez minutos” isso seria
possível, ri-se Paula, que, às 7h20, quando os primeiros raios de sol estão a
surgir, decide emitir os avisos amarelos e deixar definitivamente claro que há
nuvens a aproximar-se no horizonte.
No instituto desde 1990, Paula Leitão ainda é do tempo
em que poucos radares meteorológicos havia, imagens de satélite eram uma miragem
e grande parte do trabalho fazia-se à mão. Hoje, na sala das previsões
meteorológicas, o que salta logo à vista é um enorme video-wall de nove
televisões onde há gráficos, mapas, imagens de satélite e de radar em constante
movimento. Em 24 anos muita coisa mudou, os modelos usados melhoraram
significativamente e até já é um programa informático que prevê as temperaturas,
mas as falhas não se podem evitar.
Não há modelo matemático nenhum que consiga prever a
natureza. É preciso fazer aproximações. Modelar a natureza é uma obra para Deus,
não é para os matemáticos”, diz a meteorologista.
E, por isso, “há uma boa receptividade, as pessoas
acham que fazemos um bom trabalho”, considera Ângela Lourenço, que às 7h50 já
está a ouvir de Paula as conclusões do trabalho da noite e prepara-se para
assumir o controlo a partir daí. “Há uma tentativa de eficiência: os colegas
alertam para os pontos com os quais nos devemos preocupar. Temos de ser
selectivos”, diz. Esta quarta-feira, devido às previsões para quinta, que são
actualizadas ao longo do dia, o mais crítico era a precipitação, o vento e a
agitação marítima.
Está lá? É do tempo? – A sala que o centro operacional
de previsão de tempo ocupa fica no segundo andar do edifício-sede do IPMA, no
aeroporto de Lisboa. Além da equipa responsável pela meteorologia em Portugal
Continental e na Madeira (os Açores têm um departamento próprio), no espaço
trabalham também meteorologistas especializados na previsão aeronáutica e
observadores – a estes compete interpretar dados recebidos das estações
meteorológicas espalhadas pelo país e perceber se estas estão a trabalhar
normalmente ou se há anomalias.
A partir das 8h, quando entra o turno do dia, a
principal prioridade é preparar a videoconferência com a Protecção Civil, que
ocorre todos os dias às 10h40. Depois de o sossego da madrugada ser perturbado
momentaneamente enquanto as equipas que saem e entram falam entre si, o silêncio
regressa à sala e Sandra Correia lança-se à criação de uma apresentação de
PowerPoint. Tem mais ou menos duas horas e meia para preparar um conjunto de
cinco ou seis diapositivos. Parece fácil, mas envolve ler e reler mapas, ler e
reler observações, ler e reler gráficos. E, por vezes, atender
telefones.
Nunca nos podemos esquecer de uma coisa: somos serviço
público. Quem nos paga são os portugueses, trabalhamos para os portugueses”,
refere Ângela Lourenço, que se encarrega da conversa para não perturbar Sandra.
E encarrega-se também de atender o telefone aos jornalistas e outras pessoas que
ligam para saber como vai estar o tempo.
Há uns anos, os meteorologistas não recebiam chamadas
a perguntar pelo estado do tempo, mas isso mudou e agora é normal o telefone
tocar. Ligam jornalistas e produtores de cinema e televisão, mas, para Ângela,
“a senhora que quer estender a roupa também tem direito”. E, porque essa senhora
poderá não ter acesso à internet, – onde o estado do tempo é permanentemente
actualizado –, existe um serviço, que talvez muitos desconheçam, de teletempo. É
o 760 786 774, custa sessenta cêntimos mais IVA e, através de um sistema
automático, informa quem liga sobre a meteorologia para todo o continente e
ilhas. Antigamente, quem telefonava podia escolher sobre que região queria
informações, mas os cortes financeiros tornaram o serviço apenas
nacional.
O mundo no laboratório, o laboratório no mundo – Em
nome da eficiência financeira, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera foi
criado, em Março de 2012, pela fusão de uma série de outros institutos públicos
das áreas do mar e pescas, geologia marinha e projectos de investigação em
transportes marítimos. E também pela inclusão dos serviços do Instituto de
Meteorologia, que sempre ocupou as instalações do aeroporto de Lisboa e onde
chegaram a trabalhar centenas de pessoas na vigilância meteorológica e
sismológica.
“Até relojoeiro havia”, diz Joana Sanches,
meteorologista que se ocupou durante a noite das previsões para o estado do mar,
enquanto faz a visita guiada ao segundo andar. Chegada ao instituto em 2005,
Joana já não conheceu o relojoeiro, que trabalhava para que todos os relógios
estivessem sincronizados com os da Organização Meteorológica Mundial, a entidade
“extremamente rigorosa” que tem como missão “coordenar todos os países para
seguirem os mesmos procedimentos” no que à meteorologia diz
respeito.
Com a criação do IPMA, “houve uma grande remodelação”
não só nas estruturas da entidade como na própria disposição dos andares e das
pessoas, conta Joana. Ao mesmo tempo, lembra Ângela, o número de procedimentos
automatizados aumentou “e isso é bom”, mas há muito mais informação para
processar – e “o equilíbrio [do número] de pessoas necessário não é fácil de
encontrar”.
Quando vai ao baú das memórias dos quase vinte anos
que já leva no instituto, Ângela separa os momentos marcantes entre aqueles que
afectaram o público e aqueles que só a entusiasmaram enquanto cientista. “Tenho
de estar permanentemente a estudar, não só de me actualizar, mas de estudar, de
aprender”. Para a sua história pessoal ficam os episódios dos temporais do
Outono de 1997 (escassos meses depois de ter começado a trabalhar ali), as ondas
de calor e os incêndios de 2003 e 2005 e o temporal da Madeira em
2010.
Todos os episódios com vítimas mortais são os que mais
nos marcam. Um dos grandes problemas da meteorologia é que não conseguimos
simular em laboratório o fenómeno no seu conjunto, só em partes. Por isso, os
fenómenos são o laboratório”, afirma.
Ainda há pouco tempo, uma das situações com que os
especialistas do IPMA tiveram de lidar foi a inundação de algumas zonas de
Lisboa, por duas ocasiões. “Foi uma situação complicada”, admite Ângela
Lourenço, que destaca frequentemente que a missão do instituto é promover a
“salvaguarda de vidas e bens”. Neste caso específico, todos foram apanhados de
surpresa. “Os fenómenos meteorológicos de escala inferior a dez quilómetros são
muito difíceis de captar” antes de ocorrerem, remata.
À espera da chuva – Notar-se-ia na voz de Sandra
Correia um certo tom de nervosismo? Seja como for, a videoconferência acabou e a
Protecção Civil já sabe que se aproxima mau tempo. Com base nessa informação,
esta entidade emite um comunicado de “aviso à população” onde se deixam alguns
conselhos para lidar com o tempo adverso.
Agora, compete aos meteorologistas de serviço saber se
as previsões se confirmam exactamente como esperam. Para já, esta quinta-feira
está a ser, de facto, chuvosa. Se se confirma a gravidade esperada, só as
observações o dirão.
10h55. Apagam-se as luzes na sala da videoconferência.
No centro operacional de previsão do tempo, é altura de monitorizar o avanço das
frentes frias e da nebulosidade. Depois da azáfama da preparação do PowerPoint,
a calma parece ter regressado à sala. Sandra regressa aos seus afazeres, Ângela
vai ajudá-la. Mas, entre as equipas de previsão meteorológica do IPMA, os tempos
mortos não existem. Toca o telefone: uma estação de televisão chegará às 11h30
para saber as últimas. E um novo rebuliço se levanta.
João Pedro Pincha
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Fonte: Observador
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