Da agricultura ao turismo, da saúde às pescas, das cidades às praias, as
consequências do aquecimento global são transversais à sociedade. Nada será como
dantes. Pior: hoje, já nada é como dantes. Menos chuva, mas mais períodos de
precipitação extrema. Subida da temperatura de meio grau por década. Ondas de
calor mais frequentes e longas. Secas intensas e prolongadas. Doenças tropicais.
"Sim", pensa o leitor. "A lengalenga de sempre. Já sei que as alterações
climáticas vão afectar o País. Mas estou mais preocupado com o jantar de
hoje."
Um pormenor: estas não são previsões para o clima
daqui a cem anos, nem 50, nem 20. Não são previsões, são uma observação. É o
presente. Nas últimas décadas, o clima tem mudado, e em Portugal essas mudanças
são particularmente profundas. O tempo hoje não é o mesmo que em 1980. A chuva
cai mais concentrada, provocando inundações cada vez mais frequentes e
destruidoras, como as que provocaram o caos por todo o País neste Outono. De ano
para ano, muitas praias tornam-se mais magras, devido à subida do nível do mar,
à erosão e às violentas tempestades invernais. As secas começam a tornar-se tão
comuns que alguns agricultores estão a mudar de culturas. As seguradoras já
levam em consideração os estudos sobre alterações climáticas nas cartas de
risco. Os verões com temperaturas que antigamente seriam normais são hoje
considerados frios. E quanto a doenças tropicais, a Madeira passou, há dois
anos, por um surto de dengue que infectou mais de duas mil pessoas. O Algarve,
dizem os especialistas, será a próxima paragem do
mosquito.
"A temperatura média global já aumentou 0,85º C desde
o período pré-industrial. Em Portugal, esse aumento é ainda superior", explica
Filipe Duarte Santos, coordenador dos maiores estudos nacionais sobre alterações
climáticas. "Por causa disso, tendem a aumentar a frequência e a intensidade de
fenómenos extremos, como precipitação elevada em períodos curtos, secas, ondas
de calor. Tudo está a ser afectado por um clima em
mudança."
O aquecimento é irreversível. Mas isso não significa
que se desista de tentar mitigar os seus efeitos. É essa a razão para a 20.ª
Conferência das Partes, das Nações Unidas, que decorre esta semana em Lima, no
Peru: negociar a redução de emissões para que no encontro do próximo ano, em
Paris, se possa assinar um acordo entre os chefes de Estado, limitando o aumento
de temperatura a 2º C. Mas a adaptação – consciente ou inconsciente – aos novos
tempos já começou.
As provas de que o clima está diferente são
indesmentíveis. Fátima Espírito Santo, do Instituto Português do Mar e da
Atmosfera (IPMA), enuncia os dados registados nas últimas décadas. "Desde meados
dos anos 70, a temperatura média subiu em Portugal Continental a uma taxa de
cerca de 0,3º C por década; dos dez anos mais quentes, sete ocorreram depois de
1990, sendo 1997 o mais quente; aumento na intensidade e duração das ondas de
calor; os três anos mais secos desde 1931 são do século XXI; há um decréscimo da
precipitação anual; cinco dos dez anos mais secos ocorreram depois do ano 2000."
A tendência vai manter-se, continua a climatologista. "Em 2040, a temperatura
média anual deverá subir de 0,5º C a 1º C? e a precipitação anual diminuirá
cerca de 15 por cento."
"Os estudos mostram que nos últimos 30 anos os padrões
do clima estão muito diferentes", reforça José Paulino, da Agência Portuguesa do
Ambiente e um dos autores da Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações
Climáticas (ENAAC). As mudanças são tantas e tão transversais que lhe é difícil
escolher uma área mais vulnerável. "Agricultura, florestas, biodiversidade,
zonas costeiras... Mas também a indústria, dependente de matérias-primas que
podem ser afectadas [pelas alterações climáticas], o ordenamento do território,
o turismo e os recursos hídricos. Pouco a pouco, as pessoas apercebem-se que
toda a sociedade está a ser afectada."
Culturas substituídas – O sector dos seguros, pela
natureza do próprio negócio, é dos mais atentos a esta evolução. "Há muito que
envolvemos as alterações climáticas no leque de preocupações estruturais a
monitorar, estudar e gerir", adianta Miguel Guimarães, da direcção da Associação
Portuguesa de Seguradores. "É evidente que eventos da Natureza com consequências
severas têm ocorrido em Portugal com maior frequência e gravidade. Sobretudo as
inundações e as tempestades, na última década, como o comprovam os danos
registados." Actualmente, muitas análises de risco já pesam os efeitos das
mudanças do clima, influenciando as próprias tarifas. Ou seja, os seguros –
multirriscos, coberturas extra de automóveis, agrícolas e de vida – tendem a ser
cada vez mais caros. E esta é apenas uma gota na torrente de transformações em
curso.
Sem surpresa, a agricultura é outra área em mutação.
Todos os cenários antevêem um clima mais seco, com implicações claras em algumas
das principais culturas portuguesas, até ao final do século. Segundo o último
relatório SIAM (Scenarios, Impacts and Adaptation Measures, coordenado por
Filipe Duarte Santos), a espécie mais afectada será o arroz, com perdas de
produção médias, para o País, entre 55 e 70% (no Alentejo, as perdas podem
chegar aos 91 por cento). Segue-se o milho, com quebras de 11 a 26%, e o trigo,
de 6 a 22 por cento. Das culturas estudadas, a pastagem é a única que apresenta
melhorias de produtividade, entre 10 e 25% (no Norte, pode ir aos 60 por cento).
Por outro lado, o cultivo de hortícolas beneficiará das temperaturas mais amenas
no inverno. Um caso de estudo no Vale do Sado conclui ainda que a alteração das
datas da sementeira pode ajudar a minimizar as perdas.
Muitos agricultores já estão a integrar as
consequências das alterações climáticas nas suas decisões. "Os jovens, mais
informados e despertos, têm em linha de conta estes efeitos", garante Ricardo
Brito Pais, presidente da Associação de Jovens Agricultores de Portugal.
"Diversificam as suas áreas, investem mais em estufas e cultivam espécies de
climas mais quentes e secos."
A crescente instabilidade do tempo tem levado
igualmente a um aumento da contratação de seguros para as colheitas. Já a
agricultura biológica será especialmente dificultada pelo aparecimento de novas
pragas, enquanto as culturas geneticamente modificadas serão parte da solução,
ao poderem ser trabalhadas para resistirem melhor aos
infestantes.
Progressivamente, também as florestas sofrerão. Além
do aumento do risco de incêndios (a época de risco tende a ser alargada à
primavera e ao Outono), as condições serão mais propícias às pestes que atacam
as árvores mais comuns. Espera-se uma produtividade menor do pinheiro e do
eucalipto (com excepção no litoral norte e nas terras altas), enquanto a área de
sobreiro será alargada para norte, em zonas com maior disponibilidade de água. A
espécie, no entanto, sofrerá reduções com a falta de água nas regiões do Sul.
Para facilitar a adaptação, a ENAAC propõe que o Estado utilize os fundos
europeus para incentivar a produção de espécies mais resistentes. Mas as
mudanças mais difíceis de implementar não são as do campo.
As cidades estão no centro do furacão (literalmente,
muitas das vezes). No entanto, os Planos Director Municipal continuam a não ter
em conta as alterações climáticas. Lisboa, por exemplo, tem sofrido cheias atrás
de cheias, com a autarquia a declarar-se impotente para resolver um problema
estrutural. Para 2015, estão alocados €1,7 milhões para obras no âmbito do plano
de drenagem, desenhado em 2007 – plano esse que prevê serem necessários 153
milhões de euros para construir bacias de retenção de
águas.
O investimento é grande, mas mais caro é nada fazer,
diz Catarina Freitas, directora do departamento de Estratégia e Gestão Ambiental
Sustentável da Câmara de Almada, um dos municípios mais activos na adaptação ao
novo clima. "Por cada euro gasto, poupamos quatro ou cinco." O município tem
recuperado linhas de água naturais, alargado o diâmetro da canalização e
redimensionado as bacias de retenção para enfrentar os picos de cheia – opções
baseadas nos cenários climáticos. Para combater as elevadas temperaturas do
verão, há ainda um programa para plantar mais vegetação no centro da cidade,
onde as temperaturas chegam a estar 4º C acima da periferia (o chamado efeito de
ilha de calor urbana).
Os investigadores, porém, avisam que isto não chega: a
climatização de espaços públicos será crucial para situações de emergência. E,
além do calor, outros problemas começam a surgir, como as concentrações
perigosas de ozono de superfície, devido ao aumento do número de dias quentes,
levando a mais casos de problemas respiratórios graves (estima-se que seja causa
de morte de 20 mil pessoas por ano, na Europa).
Igualmente preocupante é o risco de transmissão de
patologias como a doença de Lyme, salmonelas, criptosporidiose, dengue, febre do
Nilo Ocidental e malária – potenciadas por calor, humidade e má qualidade da
água. O dengue, na verdade, já chegou à Madeira: no final de 2012, sete anos
depois de terem sido detectados na ilha os primeiros mosquitos infectados com o
vírus, eclodiu um surto que durou seis meses e provocou 2 168 casos de febre de
dengue. Por causa disto, e à semelhança do plano de contingência para as ondas
de calor, com avisos à população, existe já um programa de vigilância de
culicídeos (insectos que transmitem doenças).
Menos água, luz mais cara – Apesar da frequência de
trombas de água, chove cada vez menos em Portugal, de década para década (com a
primavera, o verão e o inverno mais secos, e o Outono mais húmido). No Sul do
País, há um "aumento da contribuição de dias chuvosos para a precipitação
anual", diz a climatologista Fátima Espírito Santo. Por outras palavras: chove
menos, mas de forma mais concentrada. Os modelos climáticos indicam precisamente
que haverá assimetrias sazonais, com secas mais extremas e prolongadas no Sul e
inundações (que afectam a qualidade da água).
A subida do mar poderá também aumentar a salinização
dos lençóis freáticos – uma situação já bem actual no Algarve. A solução passa
por transferir água entre bacias hidrográficas e construir barragens. Mas a
falta de água também afectará a produção de energia hidroeléctrica no Centro e
no Sul do País (no Norte, espera-se um aumento de produção). A este problema
aliam-se os danos causados por fenómenos extremos nas linhas de distribuição de
electricidade, aerogeradores e gasodutos. A própria temperatura tem um efeito
negativo, calculando-se perdas de energia de 1,6% associadas ao aumento do
calor. O maior número de dias de sol favorece a energia fotovoltaica, mas não
chega para inverter a tendência para a subida dos preços da
luz.
Nem o turismo escapa. E se podemos contar, em teoria,
com um crescimento de visitantes na primavera, Outono e inverno, cortesia de uma
meteorologia mais amena, não nos podemos esquecer que o Norte da Europa (de onde
vem a maioria dos nossos turistas) também se vai tornar menos frio. Por exemplo,
em 1995, o verão foi muito quente no Reino Unido; no ano seguinte, a entrada de
turistas britânicos no nosso país teve um crescimento mais fraco do que o
habitual – foram para fora lá dentro.
Mas nem tudo é péssimo. Portugal é um dos países mais
vulneráveis, sim, mas também um dos mais bem-comportados. O último índice de
desempenho de alterações climáticas, divulgado esta semana, da organização
não-governamental GermanWatch e da Rede Europeia de Acção Climática, coloca-nos
entre os melhores do mundo, avaliadas as políticas ambientais e as emissões de
dióxido de carbono – um honroso quarto lugar. Apenas Dinamarca, Suécia e Reino
Unido estão à nossa frente. Mas a verdade é que também temos muito mais a perder
do que os outros.
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Fonte: Visão
Verde
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