O Expresso teve acesso e
republica agora um trabalho sobre o capítulo escondido do relatório sobre o
incêndio de Pedrógão Grande. O estudo foi elaborado pelo professor da
Universidade de Coimbra, Domingos Xavier Viegas, que se queixa, num artigo
publicado esta terça-feira no “Público”, de estar a ser “censurado”. Um
documento que mostra como morreram as vítimas de 17 de Junho com base em
relatos, fotos e mapas
Cada uma das 65 vítimas do
incêndio de Pedrógão Grande tem um rosto e um nome, mas, mais do que a
identificação, é o contexto em que as pessoas morreram que faz a diferença no
momento de analisar a tragédia de 17 de Junho. O capítulo 6 do relatório
elaborado pelo Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais (CEIF) da
Universidade de Coimbra dedica-se a relatar em detalhe o que aconteceu com cada
vítima naquele dia.
O Expresso teve acesso ao
documento na íntegra e publica agora um trabalho sobre um dos relatos ali
publicados, no mesmo dia em que o autor assina no "Público" um texto
em que diz estar a ser alvo de "censura", porque na última semana, a
Comissão Nacional de Protecção de Dados emitiu uma deliberação em que só
autoriza a publicação do referido capítulo com grandes restrições. A Associação
de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande encontrou-se com o ministro da
Administração Interna e reiterou a intenção de divulgar o texto na íntegra,
encontrando-se já a recolher as assinaturas dos familiares para o poder fazer.
Para já, o estudo encomendado
pelo Governo foi divulgado no portal do Executivo sem a quase totalidade das
cerca de cem páginas dedicadas ao que Xavier Viegas, coordenador geral do CEIF,
chama de “acidentes pessoais”. Foram tornadas públicas apenas algumas
estatísticas e três histórias, anonimizadas, de pessoas que salvaram outras em
situação de risco. Há cinco meses, no terreno afectado pelo fogo, o Expresso
confirmou no local o conteúdo destas páginas ainda ocultas. São retratos de
sofrimento, mas, sobretudo, de descoordenação e falta de socorro.
A maior parte das mortes
ocorreram num período de 60 minutos, entre as 19h30 e as 20h30 de dia 17 de Junho.
O local onde se registaram mais óbitos (33) situa-se entre os quilómetros 7 e 9
da EN 236-1, que liga Castanheira de Pêra a Figueiró dos Vinhos, sobretudo num
troço de menos de meio quilómetro, palco da maioria dos acidentes dos veículos
incinerados, cujas imagens se tornaram simbólicas.
Do total de 65 vítimas, sete eram
crianças com menos de dez anos, a mais jovem tinha apenas um ano de idade e a
mais velha 87. Mortes de famílias inteiras e de pessoas sozinhas, todos em
fuga, a maioria nos carros, poucos a pé e alguns dentro de casa. O que mais
terá pesado na decisão de fugir terá sido a falta de água e luz, a tentativa de
salvar os carros, não existirem bombeiros, ver outras pessoas a sair, a
necessidade de ajudar familiares e os contornos assustadores da propagação do
fogo.
27 casos-tipo – O relatório do
CEIF organiza as mortes em 27 casos-tipo e a organização deriva da
circunstância da morte. Entre as situações relatadas, o Expresso sabe que
estão, por exemplo, os detalhes do acidente que esteve na origem da morte de
Gonçalo Conceição, o único bombeiro a perder a vida no incêndio. Para além de
precisar a colisão com o veículo de Manuel André e Maria Cipriana Almeida
(ambos morreram) entre as 20h10 e as 20h13, o relatório evidencia que os
bombeiros sinistrados terão tentado telefonar várias vezes para a Central e
para o 112, sem sucesso. A primeira vez que terão conseguido terá sido apenas
meia hora após o embate, o que os expôs à potência do fogo até serem recolhidos
por ambulâncias e civis.
Os relatos de dois sobreviventes,
Gina e Marcelo Nunes – a mãe e o irmão mais velho de Bianca, a menina de três
anos que morreu com a avó em fuga da aldeia de Nodeirinho – revelam que depois
de várias tentativas para salvar a criança, que estava presa na cadeira do
carro, Gina fez sinal a um carro que passava para parar, chegando a abrir-lhe a
porta de trás, mas o condutor continuou a marcha de porta aberta. A seguir,
outro carro passou, Gina voltou a abrir a porta e atirou-se para dentro,
pedindo que o condutor a ajudasse a salvar a filha e a mãe. Tentaram, mas não
conseguiram.
Marcelo, o filho mais velho,
fugiu a pé, perdeu os chinelos, o alcatrão quente tirou-lhe a pele ao andar.
Mas chegou ao tanque onde várias pessoas se tinham refugiado. Pouco depois,
chegou Gina, muito queimada, e os telefonemas de ajuda começaram. Foram mais de
60 chamadas para o 112 e para o comandante dos Bombeiros de Pedrógão Grande.
Diziam que iam enviar uma ambulância ou até que já o tinham feito. Mas apenas à
uma da madrugada do dia 18, quatro horas depois, um amigo surgiu e levou Gina
para o hospital. A ambulância apareceu às 3h.
Também há descrições de bombeiros
estacionados, sem participar no combate, junto de uma serração no Outão, onde
foi encontrado o corpo de Luciano Joaquim, de 79 anos. Um sobrevivente pediu
ajuda para que se apagasse o fogo nas pilhas de madeira para evitar a
propagação à maquinaria e a resposta foi de que não havia ordens. Ardeu tudo.
Há ainda relatos sobre um enorme
pinheiro que cortou a circulação, impedindo a fuga e o salvamento de várias
vítimas. O mais impressionante, contudo, é o somatório de caos, descontrolo
individual e colectivo e a descoordenação a que as vítimas estiveram expostas,
com carros a circularem em sentidos opostos, em contramão, famílias que fugiam
em mais de um veículo e que acabaram por, sem perceber, se separarem, tudo
esmiuçado no capítulo 6.
Também não é esquecida a situação
de Alzira Costa, idosa da Senhora da Piedade que morreu atropelada e cujo
processo corre em separado das demais mortes. A dela foi classificada de indirecta.
O Expresso sabe que no relatório Xavier Viegas não tem dúvidas de incluí-la
entre as demais vítimas, questionando se a sua exclusão da lista oficial não se
deve ao facto de ter sido o único corpo não recolhido na presença das
autoridades judiciais.
História da ocultação – O Ministério
da Administração Interna, então ainda liderado por Constança Urbano Rodrigues,
justificou a omissão do capítulo 6 com a preservação da privacidade das
vítimas. O novo titular da pasta, Eduardo Cabrita, optou por pedir um parecer à
Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), adiando novamente o compromisso
assumido pelo Executivo junto da Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão
Grande de revelar, na íntegra, os dois relatórios sobre a tragédia, o da
Comissão Técnica Independente e a análise de Xavier Viegas.
O próprio autor, que recebeu 25
mil euros pelo trabalho, em entrevista ao Expresso sublinhou a necessidade da
divulgação do capítulo, classificando-o como “o mais importante do relatório”.
Na página 149, da versão disponível, pode ler-se: “O conteúdo deste capítulo,
por motivos relacionados com a protecção de dados pessoais, será
disponibilizado oportunamente, logo que seja tornado anónimo.” Viegas já
reenviou o relatório sem nomes mas o texto continua por publicar na íntegra,
conforme é o desejo do autor.
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Fonte: Expresso
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