sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

6569. Capítulo oculto de relatório sobre Pedrógão evidencia falta de socorro

O Expresso teve acesso e republica agora um trabalho sobre o capítulo escondido do relatório sobre o incêndio de Pedrógão Grande. O estudo foi elaborado pelo professor da Universidade de Coimbra, Domingos Xavier Viegas, que se queixa, num artigo publicado esta terça-feira no “Público”, de estar a ser “censurado”. Um documento que mostra como morreram as vítimas de 17 de Junho com base em relatos, fotos e mapas
Cada uma das 65 vítimas do incêndio de Pedrógão Grande tem um rosto e um nome, mas, mais do que a identificação, é o contexto em que as pessoas morreram que faz a diferença no momento de analisar a tragédia de 17 de Junho. O capítulo 6 do relatório elaborado pelo Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais (CEIF) da Universidade de Coimbra dedica-se a relatar em detalhe o que aconteceu com cada vítima naquele dia.
O Expresso teve acesso ao documento na íntegra e publica agora um trabalho sobre um dos relatos ali publicados, no mesmo dia em que o autor assina no "Público" um texto em que diz estar a ser alvo de "censura", porque na última semana, a Comissão Nacional de Protecção de Dados emitiu uma deliberação em que só autoriza a publicação do referido capítulo com grandes restrições. A Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande encontrou-se com o ministro da Administração Interna e reiterou a intenção de divulgar o texto na íntegra, encontrando-se já a recolher as assinaturas dos familiares para o poder fazer.
Para já, o estudo encomendado pelo Governo foi divulgado no portal do Executivo sem a quase totalidade das cerca de cem páginas dedicadas ao que Xavier Viegas, coordenador geral do CEIF, chama de “acidentes pessoais”. Foram tornadas públicas apenas algumas estatísticas e três histórias, anonimizadas, de pessoas que salvaram outras em situação de risco. Há cinco meses, no terreno afectado pelo fogo, o Expresso confirmou no local o conteúdo destas páginas ainda ocultas. São retratos de sofrimento, mas, sobretudo, de descoordenação e falta de socorro.
A maior parte das mortes ocorreram num período de 60 minutos, entre as 19h30 e as 20h30 de dia 17 de Junho. O local onde se registaram mais óbitos (33) situa-se entre os quilómetros 7 e 9 da EN 236-1, que liga Castanheira de Pêra a Figueiró dos Vinhos, sobretudo num troço de menos de meio quilómetro, palco da maioria dos acidentes dos veículos incinerados, cujas imagens se tornaram simbólicas.
Do total de 65 vítimas, sete eram crianças com menos de dez anos, a mais jovem tinha apenas um ano de idade e a mais velha 87. Mortes de famílias inteiras e de pessoas sozinhas, todos em fuga, a maioria nos carros, poucos a pé e alguns dentro de casa. O que mais terá pesado na decisão de fugir terá sido a falta de água e luz, a tentativa de salvar os carros, não existirem bombeiros, ver outras pessoas a sair, a necessidade de ajudar familiares e os contornos assustadores da propagação do fogo.
27 casos-tipo – O relatório do CEIF organiza as mortes em 27 casos-tipo e a organização deriva da circunstância da morte. Entre as situações relatadas, o Expresso sabe que estão, por exemplo, os detalhes do acidente que esteve na origem da morte de Gonçalo Conceição, o único bombeiro a perder a vida no incêndio. Para além de precisar a colisão com o veículo de Manuel André e Maria Cipriana Almeida (ambos morreram) entre as 20h10 e as 20h13, o relatório evidencia que os bombeiros sinistrados terão tentado telefonar várias vezes para a Central e para o 112, sem sucesso. A primeira vez que terão conseguido terá sido apenas meia hora após o embate, o que os expôs à potência do fogo até serem recolhidos por ambulâncias e civis.
Os relatos de dois sobreviventes, Gina e Marcelo Nunes – a mãe e o irmão mais velho de Bianca, a menina de três anos que morreu com a avó em fuga da aldeia de Nodeirinho – revelam que depois de várias tentativas para salvar a criança, que estava presa na cadeira do carro, Gina fez sinal a um carro que passava para parar, chegando a abrir-lhe a porta de trás, mas o condutor continuou a marcha de porta aberta. A seguir, outro carro passou, Gina voltou a abrir a porta e atirou-se para dentro, pedindo que o condutor a ajudasse a salvar a filha e a mãe. Tentaram, mas não conseguiram.
Marcelo, o filho mais velho, fugiu a pé, perdeu os chinelos, o alcatrão quente tirou-lhe a pele ao andar. Mas chegou ao tanque onde várias pessoas se tinham refugiado. Pouco depois, chegou Gina, muito queimada, e os telefonemas de ajuda começaram. Foram mais de 60 chamadas para o 112 e para o comandante dos Bombeiros de Pedrógão Grande. Diziam que iam enviar uma ambulância ou até que já o tinham feito. Mas apenas à uma da madrugada do dia 18, quatro horas depois, um amigo surgiu e levou Gina para o hospital. A ambulância apareceu às 3h.
Também há descrições de bombeiros estacionados, sem participar no combate, junto de uma serração no Outão, onde foi encontrado o corpo de Luciano Joaquim, de 79 anos. Um sobrevivente pediu ajuda para que se apagasse o fogo nas pilhas de madeira para evitar a propagação à maquinaria e a resposta foi de que não havia ordens. Ardeu tudo.
Há ainda relatos sobre um enorme pinheiro que cortou a circulação, impedindo a fuga e o salvamento de várias vítimas. O mais impressionante, contudo, é o somatório de caos, descontrolo individual e colectivo e a descoordenação a que as vítimas estiveram expostas, com carros a circularem em sentidos opostos, em contramão, famílias que fugiam em mais de um veículo e que acabaram por, sem perceber, se separarem, tudo esmiuçado no capítulo 6.
Também não é esquecida a situação de Alzira Costa, idosa da Senhora da Piedade que morreu atropelada e cujo processo corre em separado das demais mortes. A dela foi classificada de indirecta. O Expresso sabe que no relatório Xavier Viegas não tem dúvidas de incluí-la entre as demais vítimas, questionando se a sua exclusão da lista oficial não se deve ao facto de ter sido o único corpo não recolhido na presença das autoridades judiciais.
História da ocultação – O Ministério da Administração Interna, então ainda liderado por Constança Urbano Rodrigues, justificou a omissão do capítulo 6 com a preservação da privacidade das vítimas. O novo titular da pasta, Eduardo Cabrita, optou por pedir um parecer à Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), adiando novamente o compromisso assumido pelo Executivo junto da Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande de revelar, na íntegra, os dois relatórios sobre a tragédia, o da Comissão Técnica Independente e a análise de Xavier Viegas.
O próprio autor, que recebeu 25 mil euros pelo trabalho, em entrevista ao Expresso sublinhou a necessidade da divulgação do capítulo, classificando-o como “o mais importante do relatório”. Na página 149, da versão disponível, pode ler-se: “O conteúdo deste capítulo, por motivos relacionados com a protecção de dados pessoais, será disponibilizado oportunamente, logo que seja tornado anónimo.” Viegas já reenviou o relatório sem nomes mas o texto continua por publicar na íntegra, conforme é o desejo do autor.
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Fonte: Expresso

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