domingo, 27 de abril de 2008

1732. TSUNAMI SILENCIOSO 1ª Parte - Motins da fome marcam o fim da era da alimentação barata

Após 40 anos de preços baixos, o custo da alimentação vai subir. Os pobres já estão a sofrer e duvida-se que possamos dar de comer a todos. Os motins de fome em África, na Ásia e na América Latina assinalam o fim de uma era, a da comida barata, e o risco de tempos de penúria alimentar.
Josette Sheeran, directora do Programa Alimentar Mundial da ONU (PAM), definiu o "novo rosto da fome": o custo dos alimentos sobe rápida e sustentadamente, invertendo quatro décadas de declínio dos preços. Está em risco imediato a segurança alimentar de 36 países.
"É a pior crise do género em 30 anos", afirma o economista Jeffrey Sachs, conselheiro do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. "É um enorme problema que ameaça um grande número de governos. Alguns estão encostados às cordas e há consequências políticas ainda por chegar." Estão a ser tomadas medidas de emergência para conter a expansão dos motins e da fome, que hoje atinge 854 milhões de pessoas. Mas o PAM e as ONG estão perplexos. Nas crises recentes tratava-se de dar comida a populações vítimas de desastres naturais ou humanos: secas, guerras civis ou até casos de governos que utilizam a fome como meio de domínio político ou de chantagem internacional. Hoje, com "comida nas prateleiras", as pessoas não têm dinheiro para a comprar. Como ajudar?
A fúria dos pobres - Os mexicanos foram pioneiros: em Janeiro de 2007, um motim contra o aumento de 40 por cento no custo da tortilla, alimento dos pobres, obrigou o Governo a subsidiar os preços. Em Setembro, houve confrontos violentos em Marrocos e, a seguir, na Mauritânia e na Guiné.
Este ano a mancha dos protestos, que fizeram algumas dezenas de mortos, alastrou aos Camarões, Senegal, Burkina Faso, Costa do Marfim, Madagáscar, Moçambique, Etiópia. No Haiti, os tumultos levaram à queda do primeiro-ministro. Na Ásia, atingiram o Uzbequistão, a Indonésia, o Iémen, o Bangladesh e o Paquistão.
Como medida preventiva, vários países suspenderam ou restringiram a exportação de cereais: Vietname, Tailândia, Camboja, Índia, Indonésia, Cazaquistão, Rússia, Ucrânia, Argentina, Brasil. Em reacção, o preço do arroz subiu 31 por cento num só dia (27 de Março). A onda de choque chegou aos EUA, onde começou o açambarcamento de arroz e farinha. Duas grandes cadeias de supermercados passaram a limitar a venda de arroz.
Poucos levaram a sério a premonitória "greve à pasta" dos italianos, a 13 de Setembro de 2007, contra a "especulação".
As várias Chinas - Uma extraordinária conjugação de factores poderia levar a pensar numa crise conjuntural ou reversível: secas ou inundações, desvio de cereais para biocombustíveis, baixos stocks e especulação. De facto, os fundos especulativos passaram a apostar nos cereais ("o trigo vale ouro"). Mas a mudança não é conjuntural, é estrutural, diz a maioria dos especialistas.
Para não falar no petróleo e nos fertilizantes, basta somar àqueles factores um outro: o aumento exponencial do consumo e a mudança de hábitos alimentares nos "países emergentes", fazendo explodir uma procura que a oferta não acompanha. Países como a China e a Índia, e muitos outros, não têm apenas "fome de energia". Com a industrialização, perdem agricultores e ganham consumidores que se alimentam melhor. O crescimento das classes médias aumenta o consumo de carne e a consequente necessidade de importar muito mais cereais para criar aves, porcos e vacas, isto é, "ocidentalizam" a alimentação à medida que se modernizam.
Tensões e desafios - As medidas de emergência deverão aliviar a pressão e reduzir a especulação. Todos os olhos estão postos nas colheitas de 2008. Mas o carácter estrutural e fulminante da crise levou o Banco Mundial e o FMI a penitenciarem-se por políticas passadas. Haverá ressacas. As políticas agrícolas da UE e dos EUA serão postas em causa. Crescerão as tensões Norte-Sul e em torno da globalização, pois vários Estados, face à instabilidade interna, são incitados a tomar medidas proteccionistas e a afirmar a sua "soberania alimentar".
Se as crises no Haiti ou na África fazem sobretudo temer uma catástrofe humanitária com turbulências políticas, já casos como o do Egipto são uma dor de cabeça geopolítica para todas as potências. Mubarak, dizem analistas egípcios, não resistiria a uma praga de fome urbana. Um colapso no Cairo é inimaginável: abalaria todo o Médio Oriente, o "celeiro do petróleo".
O "choque alimentar" terá como primeiro efeito fazer da agricultura uma prioridade mundial, reconheceu-o Pascal Lamy, presidente da OMC. A crise seria então uma oportunidade. Em 1960, havia duas pessoas a partilhar um hectare cultivado. Em 2050, haverá seis. Dizem os agrónomos: a revolução verde quantitativa do século XX - mais terras, mais irrigação e mais química - está esgotada. Trata-se de inventar outra, adaptada à escassez de recursos.
Os pobres gastam 60 a 80 por cento do seu rendimento na alimentação, os ricos apenas 10 a 20 por cento. Faz toda a diferença.
Jorge Almeida Fernandes
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Fonte:
Jornal O PÚBLICO

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